João Pessoa, 25 de fevereiro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A possibilidade de reinterpretar os clássicos pertence a quem tem contato com as obras, mas só os escritores ousados se arriscam a reescrever textos canônicos sob prismas contemporâneos. Às vezes, tais reescritas servem como porta de entrada para os mais jovens conhecerem as bases das mitologias – não foi essa a maior importância da saga Percy Jackson, ou do romance A Canção de Aquiles?
Outras vezes, autores ainda mais ousados mantêm a estrutura em versos para propor novas narrativas. É o caso de Anne Carson, canadense comumente cotada para o prêmio Nobel, que revisitou os 12 trabalhos de Hércules. Em Autobiografia do Vermelho, Carson recria a história de Gerião, originalmente um monstro que Hércules foi incumbido de matar.
Na nova versão, Gerião é um garoto do século XX, sensível, discreto e sofrido. Passou por muitos traumas até conhecer Hércules – a quem ele, a priori, não combate. Desenvolve afeto pelo herói, embora o encontro se torne bastante infeliz.
Como em toda tradução de poesia, algum sentimento se perde entre o idioma original e a transposição para outra língua. Contudo, não se perde a solidão de Gerião. Com um título que brinca com o conceito de autobiografia, já que não foi o próprio monstro vermelho quem redigiu o texto, o monstro do mito clássico ganha humanidade.
Hércules, por sua vez, perde o aspecto áureo da sua força invejável. No mito original, enfrentou uma série de criaturas apavorantes, como o leão de Neméia e a hidra de Lerna. Na história de Carson, desbrava a América do Sul. Se saísse da mitologia greco-romana para a realidade brasileira, entretanto, talvez nem 12 trabalhos fossem suficientes para elevá-lo à condição divina.
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OPINIÃO - 22/11/2024