João Pessoa, 28 de fevereiro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
O pequeno felino caminha lentamente com elegância, mas com a determinação de um dardo que, em câmera lenta, corta o ar, reto, em direção ao alvo. O gato avistara a sua caça antes mesmo de ela pousar onde pousou. Parado, indefeso, preso por um olhar ferino, o pássaro move a cabeça, de um lado para o outro, aos soluços, como se tentasse se livrar de duas mãos humanas que o agarrassem. O gato está parado, olhando fixamente para a sua presa, em posição de bote.
O caçador é todo concentração, é todo determinação, é todo obsessão. A caça é só desespero. Um desespero quieto e quase imóvel. Só a cabeça se move. O gato não se abala com nada que se passa em volta e conta com o murmúrio silencioso do mundo para se preparar para o bote e abocanhar sua presa. Nada o distrai, nada tira a sua concentração. Nem o olhar atento de um imóvel curioso. A presa quer fugir, mas não pode. Tudo parece um jogo meticuloso, estudado. Como um jogo de xadrez. O gato à espera do xeque-mate. O pássaro a procurar sobrevida.
Penso em interferir para impedir a morte que parece iminente, mas logo desisto sem me mover. Quero ver, quero observar esse jogo, essa disputa natural entre esses dois seres. Quero saber – numa curiosidade quase cruel – quem sairá vencedor, quero entender os movimentos, quero, num instante de extremo egoísmo, ter tudo para mim. Pareço também, como o pequeno e indefeso pássaro, hipnotizado.
O gato agradeceria, se soubesse de algo. E o pássaro, sem me pedir ajuda – ignora a minha presença, assim como o seu algoz – aumenta seu desespero. Está quase hipnotizado. O felino faz um levíssimo, quase imperceptível movimento, como se estivesse chegando o momento do bote fatal. Mas ele espera um pouco mais. São minutos que não cessam. Uma eternidade. Como se o mundo estivesse parado para assistir àquela pequena batalha. O caçador volta a se preparar, está mais confiante. Vejo até um inexistente sorriso maroto no canto da boca de afiados dentes do felino. E também vejo os olhinhos cheios d’água do pássaro (coisa improvável!).
Volto a cogitar a ideia da interferência para salvar a bela e delicada ave. Penso em jogar meu chinelo no gato e encerrar a batalha. Penso nisso tudo sem mover um músculo do meu corpo. Não me permito.
O felino está quase pronto para o ataque e o pássaro está quase entregue. Só resta a este um fiapo de forças para lutar.
O que vi a seguir se passou em milésimos de segundo, mas vou tentar descrever o ataque passo a passo, como em câmera lenta:
O gato finalmente se decide pelo bote no momento em que o ar, até então parado, como o tempo parecia estar, também deu o seu bote e se tornou vento. Enquanto o gato partia no ar em direção ao pássaro, com suas garras eriçadas e seus dentes arreganhados, o vento providencial despertava o pássaro quase dominado. O que meus olhos lentos puderam captar nessa ligeiríssima cena foi o felino abraçando o nada e, em seguida, já a metros de distância, o pequeno pássaro escapando da morte, voando em direção a uma árvore no morro em frente, do outro lado da rua.
O vento? Não retornou mais naquele dia.
Blog Eduardo Lamas: www.eduardolamas.blogspot.com
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