João Pessoa, 13 de abril de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Vou partir da ideia de Silvia Kohan, colhida em Os segredos da criatividade, mais ou menos nestes termos: O escritor é antes de tudo um leitor.
Por trás de qualquer texto, seja um conto, um romance, uma crônica, um poema, pulsa uma experiência enorme de leitura. Vezes, consciente, tracejada no planejamento e na pesquisa; não raro, inconsciente, fruto do magma difuso e aleatório que as palavras e as imagens estratificam no cérebro e que, enviezadamente, pode brotar ao caso dos fundos da memória e dos horizontes da imaginação.
Como explicar, por exemplo, certos acontecimentos engendrados por um texto, sobretudo um texto poético? Mais precisamente, um poema?
Certas falas que se movem na arquitetura de um poema escapam ao controle do autor, na medida mesma em que um poema, enquanto manifestação corporal da linguagem, concebe-se também no plano do inconsciente, mobilizando certos sentidos em lugar de outros, desvelando-os ou ocultando-os no fluxo oblíquo dos versos, e, ainda mais, instaurando contradições e antinomias semânticas impossíveis de serem decodificadas numa única direção.
Poema é reino do indizível, é geografia do plural, é floresta de signos, é harmonia entre som e sentido, entre movimento e repouso, entre emoção e pensamento. Tudo costurado por um fio secreto que firma, no bojo das palavras tomadas em suas múltiplas funções, a unidade de efeito que permite ao leitor usufruir da luz e da beleza.
Mas insisto: antes do poeta existe o leitor. O leitor que se faz na corda bamba da memória, mas também na riqueza do esquecimento. O fato é que o poema ecoa outros poemas; o fato é que os versos trazem à tona outras vozes; o fato é que uma imagem reverbera outras imagens, palmilhadas na cadência indevassável das leituras.
Quando o repórter, depois de lido o meu “Decisão”, último poema de À sombra do soneto, e o liga às palavras finais das Memórias póstumas de Brás Cubas, não estranhei, mesmo que, ao escrevê-lo, nunca tivesse pensado em Machado de Assis.
Digo eu, na persona de meu eu poético:
“Herança
não deixarei.
Olhem o sangue dos cactos
na paisagem nua,
uma haste de luz
suspensa na tarde agreste,
os paupérrimos marmeleiros,
as cicatrizes do deserto,
os solitários labirintos
do vento,
o silêncio, a morte,
o esquecimento.
Eis o que fica”.
Por sua vez, diz Machado de Assis pela voz de seu narrador: “- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
É verdade: não pensei em Machado. Não tive a intenção de filtrar a lógica negativa e a não complacência de seu período final. O repórter-leitor, a seu turno, leu meus versos com o seu Machado de lado. Acertou? Não acertou? Tais perguntas não cabem. O poema pode ser lido com ou sem Machado.
Não é melhor nem pior por uma coisa ou outra. Não valem, aqui, quero crer, nem a minha intenção nem a intenção do leitor. O que vale é o texto e os sentidos que possibilita no ato da leitura. Quanto a Machado de Assis, quem o lê, sempre o trará consigo, consciente ou inconscientemente.
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TURISMO - 19/12/2024