João Pessoa, 01 de junho de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
“Há livros que se abandonam ∕ para nunca terminarem”, eis o que afirmo em lugar de perguntar, tomando as palavras do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar, (foto) a partir de um de seus versos de Todas as mulheres, longo poema saído do forno em 2015 pela Bertrand Brasil.
Tenho uma lista dos inacabáveis, isto é, dos livros quase bíblicos. Lidos e relidos sempre, em conta gotas ou em passo de tartaruga, desalojando-me da ideia de um fim conclusivo e fatal que viesse acomodá-los na parte de trás das estantes ou nas prateleiras de cima, a assimilarem solitariamente o silêncio duro da poeira e do abandono.
Vou me ater apenas aos de casas e começo pelo começo do século XX. Está lá Os sertões, de Euclides da Cunha, com a vitalidade anímica de sua terra, descrita ao calor estupendo da fraseologia poética e cadenciada, transmutando-se, a cada passo dos parágrafos geometricamente arquitetados e dos vocábulos angulosos e arredios, numa das personagens centrais do drama histórico e da arqueologia cósmica e ecológica que vibra nas epifanias de cada página. Leio e releio, e não me canso dessa aventura entre saber e sabor.
Saio da prosa e me vejo, sobretudo nas noites de insônia (que são tantas e tão repetidas!), perdido pelo caleidoscópio vérsico de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, a deglutir, entre perplexo e seduzido, a magia metafórica de suas imagens dançantes e visionárias. A intensidade do excesso verbal e a linha hermética de sua melodia barroca me cativam o gosto literário e me jogam, dominado pela beleza mais estranha, no mais fecundo dos prazeres mentais.
Como estou na várzea dos poemas, não raro, divido os territórios do gozo estético com os decassílabos heterodoxos e bizarros de Augusto dos Anjos, bem próximo à fogueira acesa do seu inexorabilíssimo trabalho fonético e semântico.
Poderia me remeter, ainda, para duas experiências do sertão, na dimensão de pátria mítica. Um sertão verde e úmido, recortado por montanhas e atravessado por um frio fino, alucinante, e por rios que possuem também uma terceira margem. É o belo Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e toda sua estupenda botânica linguística.
Outro, cá de perto, pardo, pedregoso, poeirento, tocado pelos gumes cortantes da caatinga mais rala e da solidão mais áspera, e onde as pedras são mitos e sinais de deuses e demônios. Falo de A pedra do reino, de Ariano Suassuna.
Poderia lembrar, no arremate dessa prosa fiada, o Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, sobretudo pela malemolência da escrita sensual e exuberante, armada no jogo lúcido e visceral das anatomias orgânicas, que se desenham no glossário dos corpos humanos e nas zonas erógenas do processo histórico e social. Livro de ciência que é livro de poesia; ensaio antropológico com gosto de romance de formação.
Sempre que posso, e posso sempre, volto a seus capítulos abertos, no balanço morno da rede, quando as tardes já se dão ao negro aconchego da noite e à melancolia de seus escravos oníricos.
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TURISMO - 19/12/2024