João Pessoa, 15 de junho de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Antônio Mariano intervém decisivamente na vida literária. Com seu “Tome poesia, tome prosa”, vem abrindo espaço para as múltiplas vozes da literatura brasileira contemporânea, num ambiente cultural que congrega informação jornalística, discussão de ideias, perfis didáticos e atmosfera cognitiva, plural e fértil, naquilo que deve ser peculiar ao bom debate.
Poeta maduro, com vários títulos publicados, entre os quais destaco Guarda-chuvas esquecidos (2005), e duas coletâneas de contos, sendo a última O dia em que comemos Maria Dulce (2015), Antônio Mariano tem, na palavra literária, o foco central de suas inquietações criativas e o polo que define seu ethos no labor e no sonho de cada dia.
Entrevamento é seu romance de estreia (Curitiba: Kotter Editorial, 2021), a demonstrar, talvez, a necessidade de alargar o território da ficção, distendendo, assim, a região concentrada do conto, para os deslocamentos possíveis na geografia mais aberta do romance.
Quando falo em deslocamento, não quero me ater tão somente à planilha quantitativa do discurso, mas, sobretudo, ao germe da qualidade, ao apelo intrínseco de uma forma estética mais elástica, com seus componentes próprios e irredutíveis, a exemplo do personagem, do tempo e do espaço, da trama e da fabulação, do ponto de vista e da linguagem.
Entrevamento me parece o típico romance de personagem, se lanço mão da tipologia de Edwin Muir, explorada em A estrutura do romance, mesmo que sua motivação básica parta da prática de uma ação, isto é, do assassinato cometido pelo personagem e pelo qual o personagem é condenado a trinta anos de prisão.
E por que romance de personagem?
Ora, porque todos os acontecimentos da fábula, todos os cenários (os de dentro e os de fora), todos os giros do tempo, todas as alternâncias de foco narrativo, enfim, passado e presente, o interior do presídio e o exterior da sociedade, tudo contribui e ganha sentido na medida em que o personagem, no caso Moacir, se apresenta e se desenvolve através do andamento da narrativa.
Mais que narrar, mais que descrever, mais que refletir, o narrador, que é o próprio protagonista, como que analisa minuciosamente os traços paradoxais de seu temperamento e as vicissitudes na formulação de seu caráter. A “visão com” de que fala Jean Pouillon, em O tempo no romance, integrada à voz em primeira pessoa, condensa os closes e as panorâmicas do olhar dessa criatura solitária, ardente, irascível, contraditória, preconceituosa e predestinada a sofrer os impactos malignos da fatalidade.
A história se passa em dois planos: um, em que a enunciação se opera no presente, na prisão, centrada sobretudo no romance que Moacir está escrevendo e que, ao fim, nada mais é que o próprio Entrevamento, do autor, Antônio Mariano, embora com o disfarçado título de “Flor miúda”; o outro, enunciado no passado, por meio de um flashback, através do qual vamos tomando conhecimento das ocorrências pregressas, dos diversos antecedentes do crime, enfim, dos fatos e das circunstâncias que levam o personagem à prática do ato fatal.
De capítulo a capítulo, num jogo de alternâncias quase simétrico, o narrador, passo a passo, vai desenrolando o fio dos episódios e nos apresentando os outros personagens, os coadjuvantes (os amigos, a família, os colegas de trabalho) e, em especial, a antagonista, Sandra Regina, a paixão de Moacir, o seu “grande outro”, o seu céu e seu inferno.
Num aspecto, Sandra Regina é o ponto de inflexão das ações que vão mover Moacir por um contexto amoroso cheio de desenganos e perigos, perdas e decepções, e, num outro, a configuração do presidiário, em suas tensões com o ambiente carcerário, com seu companheiro de cela e, em especial, com os sortilégios da escrita testemunhal que vai desembocar no romance.
Na arrumação dos acontecimentos, diga-se de passagem, o leitor atento pode perceber os múltiplos índices de antecipação, o que, decerto, torna previsível o desfecho, quebrando, em certo sentido, a intensidade da tensão, talvez numa nótula menor do romance, muito embora tal procedimento não chegue a comprometer o equilíbrio geral e o primado estético da narrativa, sobremaneira, quero crer, em função do halo mítico e da costura trágica com que o narrador reveste a dinâmica das ações.
No primeiro plano da enunciação, isto é, no presente da narrativa, ou, dito de outra forma, no âmbito da história principal, pois a outra, a do crime, é uma história encaixada, Moacir cega um dos olhos, num gesto de autopunição que nos faz lembrar o drama de Édipo. Como Édipo, Moacir é vítima da ironia do Destino, este deus cruel que, no tear das peripécias, frusta a realização de seus sonhos e a realidade de suas ilusões.
Não obstante, se atentarmos bem para o parágrafo final, seja possível extrairmos, do simbolismo da luz, algum laivo de esperança, pois assim arremata o narrador a sua história:
O meu olho direito não me fará falta. Essa é a minha maior certeza. Todo caolho valoriza mais o que pode ver. Como esse sol que invade a enfermaria com um brilho cheio de promessas. Um brilho em que jamais atentei nessa vida.
Escrito em estilo realista, direto, coloquial, com amplo aproveitamento dos ditos chulos, dos lugares comuns, da gíria e das expressões populares, ao mesmo tempo em que fundado na sondagem psicológica, na crítica social e na reflexão acerca da condição humana, este romance de Antônio Mariano sinaliza para mais uma vereda a ser explorada no movimento de seus processos criativos.
Romance de amor, romance da violência social, romance do ambiente carcerário, romance político, romance do romance, não importa. Importa que o autor nos conta uma história, nos mostra a loucura de um homem, nos revela a face desolada de um anti-herói da existência, assim como cada um de nós. E isto não é pouco!
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OPINIÃO - 22/11/2024