João Pessoa, 13 de julho de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Alguém, nas redes sociais, me acusa de caolho. Acredito que era com a intenção de me ofender. No entanto, como me ofender por algo que eu não sou? E se eu fosse, deveras, caolho, eu deveria ver nisto uma ofensa, se a pessoa está apenas constatando um fato? Por outro lado, sei que a intenção ofensiva se revela na compreensão enviesada de que, mesmo eu tendo dois olhos, não consigo ver a verdade que o acusador diz enxergar. Sou, portanto, caolho. Ainda assim, não há ofensa alguma. Haveria, no máximo a provável constatação de que quem é caolho, físico ou mental, enxerga mal. É possível, mas não é provável.
O acusador, de dedo em riste, passa, então, ao que ele acredita ser uma argumentação, quando, na realidade, o seu ajuntamento de palavras mal se sustenta como doutrina medíocre, num discurso em que o caos da forma se espelha claramente na essência do que ele diz. Assegurei, no entanto, o direito do acusador a expressar a má-digestão de um discurso que, por si só, já é canhestro – o de que o cidadão deve armar-se para a sua proteção. Era isto o que ele intentava dizer, mas o afogueamento da sua prosa mal contida e mal formulada prejudicava, claramente, a sua intenção.
De qualquer modo, é discurso que não se sustenta. Em princípio, porque sou contra a posse e, sobretudo, o porte de armas. Na prática, porque os bandidos, todos sabemos, estão mais bem armados do que a própria polícia e têm uma intimidade com o manuseio de armas que o cidadão comum não possui. Enfim, como as nossas leis são frouxas, a frouxidão incentiva o uso de armas para se resolver qualquer discussão tola, no trânsito ou com um vizinho. A arma acaba se voltando, portanto, não contra o bandido, mas contra o cidadão comum. Incluam-se, entre os cidadãos comuns, as crianças, vítimas de brincadeiras com as armas sempre mal guardadas dos pais.
Voltemos à pretensa acusação de caolhismo. Lembrei-me, de imediato de três grandes escritores, que se referiram a quem é caolho, de modo jocoso ou de modo filosófico – Marcial, Victor Hugo e Ariano Suassuna.
Marcial, poeta latino do século I d. C., revela-nos o quanto Quinto ama Thaís, o que surpreende quem a conhece. Thaís é caolha (lusca). A surpresa reside no fato de que a pessoa que conhece Thaís não conhece Quinto. Se Thaís, diz o epigrama, não tem um olho, Quinto não tem os dois. É cego, coitado. Ser caolho, portanto, não constitui, necessariamente, uma desvantagem, como nos mostra Marcial:
Thaida Quintus amat. Quam Thaida? Thaida luscam.
Vnum oculum Thais non habet, ille duos.
Quinto ama Thaís. Que Thaís? Thaís caolha.
Thaís não tem um olho; ele, os dois.
Victor Hugo, em Notre-Dame de Paris (Livro I, Capítulo V), traduzido, entre nós, como O Corcunda de Notre-Dame, filosofa sobre o fato de ser caolho, através do personagem Jehan, irmão de D. Frollo, o arquidiácono de Paris, tendo como objeto o personagem Quasímodo. Protótipo da feiura, além de corcunda, o sineiro é surdo e caolho, o que leva ao seguinte comentário, expressando a ciência de quem tem apenas um olho, sobre a sua carência:
“Un borgne est bien plus incomplet qu’un aveugle. Il sait ce qui lui manque”
(Um caolho é bem mais incompleto que um cego. Ele sabe o que lhe falta.)
Já Ariano Suassuna, com a sua costumeira verve, põe na boca do poeta Lino Pedra-Verde, em A pedra do reino (Folheto LXXVIII – A Cegueira Epopeica), os versos abaixo, que dão o golpe de misericórdia, com relação ao caolho:
Camões, poeta Caolho,
grande Vate português,
enxergava mais com um olho
do que nós todos com três.
Dando por encerrada a contenda, finalizo com um epigrama de minha lavra, inspirado na frase de Victor Hugo, já referida acima:
Entre cegos e caolhos, a nação está dividida,
e quem é que sofre mais, nesta luta tão renhida?
Se o cego nada vê, e só sabe o que escuta,
fica só na superfície, porque nada ele perscruta.
O caolho vê metade, mas de longe enxerga a malta:
Sofre mais quem tem um olho, pois conhece o que lhe falta.
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