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Obviamente é o tempo presente o que nos importa – ao menos para a maioria das pessoas -, pois nele vivemos e fazemos acontecer. Todos nós conhecemos alguém que, decadente e esquecido, alimenta-se das glórias do passado. Concordo que fatos pretéritos, se marcantes em nossas vidas, devem ser lembrados: momentos felizes, conquistas, filhos realizados, nos dizem que viver é bom, e até fracassos e tragédias, pois também nos dão lição de vida. Agora, viver atormentado por um acontecimento do passado é caso para analista debulhar.
Nos anos 50 a socialite paulistana (mas espanhola de nascimento), Carmem Dolores Barbosa, costumava reunir nas terças-feiras, em seu apartamento situado na Rua General Jardim, 51, 3º andar, muitos escritores, não se sabe bem por qual motivo, mas tinha admiração pelos cultores das letras. Tanto que, certa feita, Clarice Lispector disse desconhecer qual “a razão do envolvimento de tal senhora com tantos escritores”. A única queixa que os escritores faziam dessas reuniões, é que a anfitriã não servia bebida alcoólica (a exceção foi quando William Faulkner, que era bom de copo, veio ao Brasil e visitou seu apartamento). Escritor gosta de ser paparicado – aliás, como todo o mundo – e talvez isso justificasse o sucesso desses encontros de intelectuais. Lembro que, em entrevista, o escritor paulistano Bernardo Kucinski afirmou que em mais de trinta anos de jornalista e professor nunca lhe fizeram nenhum agrado, porém, quando decidiu virar escritor começou a ser bajulado e receber convites para eventos.
Foi num desses encontros que o então atormentado e já ficando esquecido pelo público Oswald de Andrade, conheceu o também escritor, então iniciante, Marcos Rey. Houve admiração recíproca e ficaram amigos. Oswald até escreveu um artigo em sua coluna “Telefonema” no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 2 de fevereiro de 1954 elogiando o primeiro livro de Rey, Um gato no triângulo. Por outro lado, Wilson Martins, crítico respeitado e impiedoso, tachou o livro de Marcos de “melodrama barato”. Meio século depois, em sua monumental obra História da Inteligência Brasileira, reafirmou: “Eu até o elogiei mais tarde, mas ele era fraquinho no começo da carreira”.
Já com a amizade sedimentada com o responsável pelo movimento antropofágico de 1928, Marcos Rey sugere a Oswald de Andrade escreverem um livro juntos, uma espécie de entrevista longa. Marcos perguntava e Oswald respondia. O participante da Semana de Arte Moderna de 1922 gostou da ideia e começaram a se encontrar sempre na casa do autor de O Rei da vela. Foi numa dessas conversas que Oswald revelou a Marcos Rey um fato que o atormentava por se sentir culpado, e que está narrado no seu livro de memórias Um homem sem profissão.
Oswald, que nessa época morava em Vila Madalena num imóvel modesto, tinha a saúde debilitada pela diabetes e estava muito magro aos 64 anos de idade. Perguntou a Marcos se ele havia lido seu livro Um homem sem profissão. Ao ouvir a resposta afirmativa, o veterano escritor paulistano disse que a morte de Daisy, de certo modo, fora culpa sua, por tê-la incentivado a abortar um filho que ele nem tinha certeza se era seu. Daisy era como Oswald chamava a normalista Maria de Lourdes Castro Dolzani. Nessa época, Owald era casado com sua primeira esposa.
Após o aborto a saúde de Daisy definhou em decorrência de uma hemorragia agravada por uma tuberculose. Oswald toma uma decisão: larga a esposa e sai para casar com Daisy dentro do próprio quarto do hospital, no leito de morte. Duas semanas após a união dos dois, Daisy morre. Nas suas memórias, Oswald escreve: “A que encontrei enfim, para ser toda minha, meu ciúme matou…” (in Um homem sem profissão, Companhia das Letras, 2019).
O escritor Carlos Maranhão no livro Maldição e glória – A vida e o mundo do escritor Marcos Rey (Companhia das Letras, 2004), registra que após a morte de Daisy, Oswaldo “Por um longo tempo, guardou restos de palha das duas cestas de flores que enfeitaram o quarto no casamento e um busto de Daisy esculpido por Victor Brecheret…”.
E durante aquela conversa que tivera com Marcos Rey, trinta e cinco anos após a morte de Daisy, que fora enterrada vestida de branco no túmulo da família Andrade, no Cemitério da Consolação, em São Paulo, Oswald nem de longe lembrava aquele homem polêmico, rico, esbanjador e mulherengo que fora no passado. Tinha se transformado num antropófago atormentado.
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TURISMO - 19/12/2024