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Pastoral da casa antiga
A casa é tudo.
Um rio memorial se alonga
em cada fibra de cal.
O tempo nos telhados,
indômitos luares,
ventos vestidos de sombra.
Nas janelas
o orvalho apascenta as estrelas,
acalenta os fantasmas
com seu leite de relva.
Abrem-se as comportas do sonho
com as safiras da manhã,
cimitarras na tarde.
Pelos postigos
tecem as vozes da noite
a trama ranhenta das tramelas,
portas acesas, ventanias,
vitrais.
A cumeeira é silêncio
Inaugurando as danças do sono.
Casa, abriga de assombros,
o inverno te visita
com seus danados dragões.
Que dizer da sala
e seu pântano de potassa?
Que dizer das vigas
e suas vértebras solares?
Que dizer do sótão
aonde se abeira a colmeia
e o infinito?
Eu sei: a casa é tudo.
O hálito dos mortos
nas abóbadas recende
o passado que não passa.
O cristal do tempo
espelha as varandas,
e o lodo da lua alaga
os quintais.
Nem o salitre
sepulta os antúrios de amor
regados no alpendre.
Nem a ferrugem dos anos
devora o mistério no copiar.
A casa está viva.
Inteira como uma lenda,
Intacta como uma pedra,
Perfeita como o deserto.
Afinal, somos nós que ruímos…
(DE Ofertório dos bens naturais, 1998)
Qualquer homem (sua carência)
Qualquer homem carece,
Inteiro, de uma cidade.
De uma cidade inteira
como é inteira a verdade.
Qualquer homem carece
de outro homem, inteiramente.
De outro homem que, como ele,
queira-se inteiro homem,
internamente.
Qualquer homem carece
de uma mulher.
Carece de outra mulher que seja
inteira como é inteira uma avenida,
como é verdadeira uma cidade.
Como é inteira uma cidade
com seus bairros mortos e arredores
postais, de sonhos urbanizados.
Qualquer homem carece
de uma mulher, inteira e espaçosa
e aberta como um deserto.
Qualquer homem não é nada
se não se perde pelas dunas
de uma mulher amada.
De uma mulher,
planície estendida e agreste
que se entrega e se alarga,
tantas mulheres,
como qualquer cidade.
(De Caligrafia das léguas, 1999)
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OPINIÃO - 22/11/2024