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Clara Velloso Borges é escritora, professora de literatura e mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]  

Dos arrependimentos

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publicado em 16/09/2022 ás 07h00
atualizado em 15/09/2022 ás 19h11

Foi só ter colocado um pé para fora do carro que me arrependi. Deveria ter ficado em casa. Ou ido a um lugar menos barulhento, para conversar sossegadamente. Ou ido a um lugar mais barulhento ainda, já que havia saído de casa e deveria fazer a noite valer o deslocamento. Quando o segundo pé tocou o solo, já estava tomada pelo desgosto.

Arrependida de tantas pequenas coisas, logo me arrependi também das grandes. Arrependi-me de quando deveria ter ficado calada e falei mais do que em um TED Talk, de quando larguei um sonho pelo caminho, de quando fiquei em dúvida entre os gabaritos B e C, durante uma prova importante, e assinalei a letra B (a resposta era C). Para cada escolha errada, um arrependimento.

Após algumas reflexões, me arrependi até de ter me arrependido. Passou logo. Rever o próprio comportamento não é tão ruim assim. Não se arrepender – entre outras ideias absurdas – pode ain ser objeto de julgamento, como em O Estrangeiro, de Albert Camus.

Ser sugada pelo arrependimento, por sua vez, inviabiliza a felicidade. Segundo o mito grego, Orfeu vai buscar sua amada, Eurídice, no mundo dos mortos, após ela ter sido picada por uma serpente. Músico de excelência, dribla vários desafios do submundo com sua lira e chega a fazer um acordo com Hades. Eurídice poderá sair do submundo seguindo Orfeu, desde que ele não olhe para trás. No final do trajeto, ele olha. E com certeza é tomado por arrependimento quando perde a amada para sempre, porque descumpriu o trato.

Quem olha para trás, como Orfeu, pondera sobre o passado com mais experiência. Só quem não se arrepende de nada é Edith Piaf,  (foto) com seu je ne regrette rien.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB