João Pessoa, 21 de setembro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Em três livros, Marcos Cavalcanti de Albuquerque, desembargador por profissão e nosso confrade na Academia Paraibana de Letras, revela-se um ficcionista, um contador de “causos” e um coligidor da tradição. Refiro-me aos livros Contos, lendas e mitos (2021), A botija – Tristão e Angélica (João Pessoa: Mídia Gráfica Editora, 2022), e Monte-mor (João Pessoa: Ideia, 2020), todos em primeira edição, escritos durante a pandemia, que, em lugar de uma face destruidora, mostra uma possibilidade de criatividade, para quem sabe tirar proveito da adversidade.
Em Contos, lendas e mitos, ao que parece uma edição do autor, por não haver referências editoriais, encontra-se, a um só tempo, o contador de “causos” e o homem preocupado com resgatar e fixar no papel impresso as tradições de sua terra, o decantado Vale do Mamanguape. Na primeira parte deste volume, chamada de contos pelo autor, encontram-se histórias bíblicas, apontamentos da história da Baía da Traição e cercanias, tanto quanto histórias pitorescas, das quais se destacam “O bêbado e o juiz”, pondo a nu a verve popular, a partir de uma das figuras mais típicas que pode habitar as cidades e os vilarejos – o bêbado e as suas tiradas, com um misto de valentia e de presença de espírito.
Não fica para trás “O pedaço da galinha”, em que se celebra uma das partes mais deliciosas, senão a mais deliciosa do galináceo, conhecida popularmente como “sobrecu” e, por incrível que pareça, pelo seu nome erudito, proveniente do grego, “uropígio”. A história, contada com uma ponta de malícia, que deixarei irrevelada, para que o leitor possa melhor apreciá-la, remeteu-me de imediato a um episódio de L’Assomoir, romance de Émile Zola, em que um dos personagens aprecia esta parte do corpo das aves, chamando-a pela lembrança trazida pela sua forma – chapéu do bispo.
A segunda parte de Contos, lendas e mitos, revela o escritor preocupado com coligir as lendas e os mitos da região onde nasceu. Deles se destaca “A botija enterrada”, núcleo a ser desenvolvido na novela A botija – Tristão e Angélica, além do elenco de personagens misteriosos e encantados, que povoam a memória popular, infundindo, a um só tempo, medo e respeito pelo desconhecido – a Mão Cabeluda, a Mãe d’Água, o Lobisomem, bruxas, sereias, o Batatão, o Boto, o Haja-Pau… Todos compondo um mundo de mistérios e narrativas ditas “mal-assombradas”, cujo representante maior, quero crer seja a terrível e temida “Procissão da meia-noite”.
A botija – Tristão e Angélica é a ampliação do “causo” da botija, que já se encontra, conforme dissemos, em Contos, lendas e mitos. Marcos Cavalcanti de Albuquerque transforma o núcleo narrativo que ali se encontra em uma novela, em que se fundem uma reportagem publicada no Correio da Paraíba, em 26 de setembro de 1995, assinada pelo jornalista Hilton Gouveia de Araújo, com um mito bastante conhecido, principalmente na zona rural, com uma história de amor, cujos indispensáveis ingredientes do desejo impotente diante da impossibilidade social ali se digladiam, e com uma peça jurídica, onde se revela, por trás do escritor, o homem das leis.
“A noite da palha queimada”, conto já apresentado em Contos, lendas e mitos, é, na realidade, o núcleo de onde partirá o romance Monte-Mor. Apesar de ser uma narrativa sobre as atividades de fundação e de expansão do grupo Lundgren, no Vale do Mamanguape, fato importante para a nossa história, Marcos Cavalcanti de Albuquerque marca um tento em começar o seu romance com a narração da noite da palha queimada, concedendo a seu texto uma dinâmica que joga o leitor no que se chama tecnicamente de narrativa “in medias res”. Visto a si próprio em meio à trama que já está em andamento, o leitor se interessa e vai adiante, procurando saber o que motivou aquele episódio e quais serão os seus desdobramentos.
Numa trama bem tecida, Marcos Cavalcanti de Albuquerque vai revelando que o progresso, quando feito aos golpes do machado bronco, se dá com o prejuízo dos mais pobres, especificamente as populações indígenas remanescentes, e, sobretudo, com o prejuízo do meio-ambiente. Em torno desse progresso, encontram-se as histórias de discriminação, traição, assassinato, política de conchavos e, como não poderia deixar de ser, a ambição pelo poder, que leva o homem a cometer os piores desatinos.
Monte-Mor é ainda uma boa oportunidade para quem, como eu, quer aprender sobre a nossa história, especialmente sobre o Vale do Mamanguape. História que nos faz ver surgir Rio Tinto, assim batizado pela cor da sua água e em substituição ao antigo nome Monte-Mor, e sobre o binômio desenvolvimento/estagnação que a região teve, a partir da instalação do grupo Lundgren, que ali viveu o seu apogeu e o seu declínio.
No apogeu, Rio Tinto teve cine-teatro, para 1800 pessoas, escolas de música e Tênis Clube e chegou a ser chamada a futura Manchester do Nordeste, por Frederico Ludgren, dirigente do grupo da família. Recebeu, inclusive, a visita do presidente Getúlio Vargas, em 1933. Na sua decadência, passou a ser conhecida ironicamente pela ex-futura Manchester do Nordeste…
Tendo composto o seu livro com três partes – “A noite da palha queimada”, “De Monte-Mor a Rio Tinto” e “Histórias e narrativas potiguaras” – Marcos Cavalcanti de Albuquerque retorna, nesta terceira parte, aos cuidados com a tradição local, com a recolha dos mitos ali entretecidos há séculos. Para nós, trata-se de um cuidado da maior importância, pois em um país que sobeja em tradições riquíssimas, a coleta do que faz a nossa cultura deve ser feita, conservada e transmitida, sem o que não saberemos quem somos. Marcos Cavalcanti de Albuquerque, com estes trabalhos voltados para “a sua doce terra secular”, o seu “Mamanguape de outrora”, aponta o caminho para que saibamos buscar e reconhecer a nossa identidade.
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TURISMO - 19/12/2024