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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Confissões de um leitor

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publicado em 28/09/2022 ás 07h00
atualizado em 27/09/2022 ás 18h53

Não consigo ler apenas um livro de cada vez. Só se for algo muito especial, que me apanhe por inteiro com o peso, a beleza e a verdade de sua mensagem. Algo assim, que se começa e não se pode parar mais. Isso é raro, mas, às vezes, acontece. Uma novela, como Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, ou um conto longo, como “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstoi, dificilmente permite que o leitor abandone suas páginas, para fazer qualquer coisa da vida cotidiana.

Insisto: isso é raro, principalmente comigo, que sou dado aos trâmites imprevisíveis daquilo que chamo leitura circular, isto é, a leitura de diversos livros simultaneamente, não importa o gênero, a temática, a forma ou o conteúdo.

Recentemente, no entanto, vivi essa experiência singular, a experiência da leitura de um só fôlego. Gabo & Mercedes: uma despedida,  (foto) de Rodrigo García, filho do genial escritor colombiano. Relato dos últimos dias de seu pai tragado pelos ácidos da doença e já beirando a morte, essa pequena grande obra, em seu tom testemunhal, constitui um dos documentos mais ricos e mais pungentes acerca da condição humana, sobretudo porque traz, à cena, os caracteres de uma personalidade única e exemplar. O sofrimento e a solidão de um escritor em seu labirinto.

Concluída, no entanto, essa leitura dolorosamente prazerosa, voltei a meu mundo esférico, composto de letras, parágrafos e capítulos, vendo-me às voltas com alguns títulos que preenchem o vazio de meus dias brancos.

Estou fascinado com a biografia, Van Gogh: a vida, assinada por Steven Naifeh e Gregory White Smith, em edição da Companhia das Letras, 2012. Obra monumental, talvez a biografia definitiva, se é que existe biografia definitiva. São 1094 páginas a cobrir, em detalhes minuciosos, o percurso do pintor dos pintores, desde sua remota infância até os momentos finais. Como toda grande biografia, tem-se, aqui, mais que o traçado psicológico de uma alma humana, na medida em que o contexto social e histórico, em particular do mundo artístico da Europa, aparece em toda sua pujança e complexidade. Biografias, autobiografias, memórias, confissões, cartas e diários são a menina de meus olhos de leitor.

A propósito, divido essa leitura com as memórias da vida intelectual de Luís Martins, intitulada Um bom sujeito, numa edição da Paz e Terra, de 1983. Luís Martins é carioca da gema e escreveu também outras memórias, Noturnos da Lapa e o romance Lapa, o que o faz, talvez, o escritor mais afim ao universo artístico e boêmio do Rio de Janeiro e de São Paulo, nas décadas de 30, 40 e 50 do século passado. Homem de muitas amizades, entre as quais destaco a de Mário de Andrade, a de Manuel Bandeira, a de Carlos Drummond de Andrade e a de Sérgio Milliet, entre tantos outros que, com ele, conviveram na noite e na fase romântica das redações dos jornais. Livrinho leve, precioso, cheio de sutilezas e informações de bastidores que fazem a delícia desse leitor inveterado que sou.

Leio ainda Notas de um constante leitor, de Cândido Motta Filho, em primeira edição da Martins, 1960. Atenho-me, principalmente, aos pequenos, porém, lúcidos e instigantes ensaios, acerca de Papini e de Nietzsche, autores de minha predileção particular. Biógrafo de Eduardo Prado e autor de dois excelentes livros de memórias, Contagem regressiva e Dias lidos e vividos, ambos integrando a seleta Coleção Documentos Brasileiros da José Olympio, Candido Motta Filho é um daqueles leitores que amam os livros e que deles fala com afeto e sabedoria.

Já no setor filosófico, um de meus interesses mais prementes, leio France Farago, em seu ensaio Compreender Kierkegaard, numa edição da Vozes, de 2011. Obra de caráter propedêutico, de pendores didáticos, analítica e exegética, visando, sobretudo, esclarecer os paradoxos temáticos do pensamento desse dinamarquês genial, inclusive, situando bem o seu itinerário no âmbito filosófico de seu tempo, isto é, a primeira metade do século XIX. Sou inclinado a ter casos com alguns filósofos. Kierkegaard é um deles, assim como Schopenhauer, Nietzsche e Cioran. Gosto de lê-los e de ler tudo que se escreve sobre eles.

Também não passo sem a poesia. Leio e releio, com prazer e espanto, os poemas de Louise Glugk, a norte-americana que ganhou o Nobel de 2020, em edição da Companhia das Letras. Confesso que não a conhecia. Lendo, no entanto, um artigo do professor Amador Ribeiro Neto, no Correio das Artes, me vi diante de trechos de poemas que me impactaram. Daí, fui à caça. Adquiri dois exemplares, com poemas da sua lavra, e mergulhei, entre assustado e comovido, no elemento prosaico e poético de sua dicção lírica original. Estou encantado… Sua poesia possui a força da revelação de realidades insuspeitas, o poder de tocar, com a eficácia dos instrumentos pontiagudos, a medula visceral das coisas, o desamparo e a perplexidade que paralisam os movimentos humanos.

E o romance, o grande romance, os contos, as crônicas, os ensaios, a história, a ciência, a educação, o misticismo, a alimentação, os esportes? Ficam para outras letras lúdicas. Rsrsrs…

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