João Pessoa, 29 de setembro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Costumo levar em boa conta as opiniões dos especialistas sobre os mais diversos assuntos. Sejam críticos de artes plásticas, música, cinema e, principalmente, literatura. São pessoas com um olhar aguçado, que enxergam nas entrelinhas e fazem um prognóstico preciso sobre a obra avaliada. Contudo, não sejamos tão ingênuos para pensarmos que são seres imaculados, imunes às influências de amizades, predileção de gênero, proteção de “igrejinhas”, preconceito regional e outros que tais. Urge a máxima da regra e exceção.
Há casos em que o crítico pisa feio na bola, ou mais apropriadamente, no texto. Espinafra uma obra, diz que seu conteúdo é inócuo e que seu legado será o esquecimento. E o livro analisado arremata prêmios; ganha musculatura; amplia o leque de leitores e segue conquistando gerações, frustrando o crítico pelo seu erro crasso de avaliação. Isso acontece com mais frequência do que se imagina.
Tomemos como exemplo um livro lançado no ano de 1960 e que foi campeão de vendas, ficando à frente de obras como Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado; Furacão sobre Cuba, de Jean Paul Sartre, Crepúsculo de um romance, de Graham Greene, e tantos outros autores nacionais e estrangeiros. Era o primeiro livro escrito por uma favelada que tinha frequentado a escola por apenas dois anos, ou seja, semialfabetizada. O livro escrito em forma de diário foi intitulado Quarto de despejo – diário de favelada. A autora era uma mulher negra que até então sobrevivia catando papel nas ruas, e que se chamava Carolina Maria de Jesus (foto) (1914-77).
Sobre o livro de Carolina o respeitado crítico literário, professor, pensador, escritor e líder católico brasileiro Alceu Amoroso Lima (1893-1983), também conhecido pelo pseudônimo Tristão de Athayde, escreveu que “...ficará como o livro do ano de 1960, sem dúvida, mesmo que de futuro ninguém mais o leia, como é provável”. E ainda enfatizou que “O Quarto de Despejo ficará, a meu ver, isolado, como um documento que a posteridade não lerá, e será depressa esquecido”. Não imaginava o professor Alceu que o livro seria traduzido em dezesseis idiomas, publicado em mais de quarenta países, best seller nos Estados Unidos, adaptado para o cinema, teatro e documentários, e que ainda hoje, mais de sessenta e dois anos depois de lançado, ainda é vendido nas livrarias.
Outro caso gritante e com viés preconceituoso, foi o do crítico literário (temido por muitos escritores) Wilson Martins (1921-2010), que chegou a escrever, por mais de uma vez, que o livro de Carolina era uma invenção do jornalista Audálio Dantas (1929-2018), ou seja, que Audálio teria escrito o livro com propositais erros de ortografia e atribuído a autoria à Carolina. Foi necessário que o poeta Manuel Bandeira escrevesse reconhecendo a autenticidade daquela escrita, dando como impossível alguém, com total domínio gramatical, escrever daquela maneira genuinamente pura e sincera, com os erros ortográficos de quem teve pouca instrução escolar.
O sucesso do livro de Carolina incomodou muitos intelectuais, que não perdiam a oportunidade de diminuir o valor literário da obra que, altaneira, resistiu a todos esses ataques e seguiu adiante mostrando a dor, o sofrimento e a fome daquelas pessoas que, no dizer da autora, habitavam o “quarto de despejo” das grandes cidades que são as favelas. Por isso, Carolina continua presente!
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