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MAISPB ENTREVISTA

Artista hondurenha Indiana Nomma grava tributo a Mercedes Sosa

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publicado em 08/10/2022 ás 12h38
atualizado em 08/10/2022 ás 19h14

Kubitschek Pinheiro MaisPB

Fotos – Marcelo Castello Branco,  Agustina Haurigot e  Maga Alv

Mercedes Sosa, uma das maiores cantoras do mundo, está bem viva na voz de  Indiana Nomma. Guarde esse nome. Cantora nascida em Honduras, filha de pais brasileiros que se exilaram durante a ditadura, acaba de lançar o álbum “Mercedes Sosa: a voz dos sem voz”, que gravou com o violonista André Pinto Siqueira e já está em todas as plataformas de streaming.

Abre o disco com Años, do cubano Pablo Milanez. Segue com Los Hermanos (Ataualpha Yupanqui), Si se calla el cantor (Horacio Guarany), Alfonsina y el mar (Ariel Ramires e Felix Luna) e Gracias a la vida (Violeta Parra). O repertório traz, ainda, Unicórdio e La maza (Silvio Rodriguez), Como la cigarra (Maria Elena Walsh), Volver a los 17 (Violeta Parra) e Canción con todos (Armando Tejada Gomez e Julio Cesar Osella).

A cantora hondurenha iniciou a carreira em Brasília, como vocalista da banda BSB Disco Club. Indiana Nomma radicou-se no Rio de Janeiro há 12 anos. Assim como Mercedes Sosa (La Negra), Indiana Nomma faz questão de trazer para perto as novas gerações de artistas para conhecer o canto de uma das maiores representantes da cultura de um país

Mercedes esteve no Brasil no auge da ditadura militar. Foi a única artista, até então, a lotar o Maracanãzinho por duas noites seguidas. Tamanha a importância do que cantava, ela foi o elo entre os países de língua hispânica e nosso Brasil, que, infelizmente, continua virado de costas para o resto da América Latina. Essa luta de conscientização pela solidariedade e apoio entre os povos do nosso continente é urgente até hoje. Fora a luta contra a inacreditável sombra que ainda paira sobre nós, com todos os recentes episódios antidemocráticos que vêm ocorrendo no nosso Brasil e em outros países da América Latina”, reflete Indiana.

Festival de Arte Popular Mercedes Sosa

O tributo “Mercedes Sosa: a voz dos sem voz”, que, há 22 anos, a cantora Indiana Nomma presta à saudosa cantora argentina, foi oficializado no Festival de Arte Popular: Mercedes Sosa, no último dia 1º, em Buenos Aires. Nesta edição, o festival celebrou 40 anos do antológico show de Mercedes Sosa no Teatro Ópera e os 10 anos da implementação da lei de identidade de gênero, temas de extrema importância nos dias atuais.

O festival é organizado pelos netos da artista, Agustin e Araceli Matus, presidente da Fundación Mercedes Sosa. Eles são os herdeiros detentores da marca registrada Mercedes Sosa e, por admirarem o trabalho de Indiana há anos, resolveram reconhecer a homenagem formalmente numa cerimônia no Centro Cultural Borges, na capital portenha.

“Ser a representante brasileira-hondurenha a participar desse evento de tamanha importância não tem preço. E a responsabilidade aumenta. Porém, é nas músicas dela que encontro o equilíbrio para seguir honrando sua história. A gratidão é imensa!”, exalta Indiana.

Nas fotos da família Sosa, Indiana aparece com os netos de Mercedes Sosa,·Araceli Matus e Agustin Matus

A artista conversou com o MaisPB, e traz revelações sobre seu trabalho, fala do álbum e enaltece mais ainda a homenageada Mercedes Sosa e conta histórias da sua família, que viveu o tempo da ditadura no Brasil e em outros países. Confere a entrevistas.

MaisPB – Como aconteceu esse trabalho? Sua voz grave segue a voz de Mercedes Sosa. Vamos falar dessa descoberta?

Indiana Nomma – Nossa família se mudou para Manágua, três meses após o fim da Revolução Sandinista na Nicarágua, em fins de 1979. E no início de 1980 presenciamos um grande feito no país: a Campanha Nacional de Alfabetização, para a qual foram convocados a ensinar seus conterrâneos, voluntários a partir dos 11 anos de idade que soubessem ler e escrever. Em uma terra destruída pela guerra e em extrema miséria, era urgente a compreensão de que se todos estivessem alfabetizados, seria possível reerguer o país a partir de outro patamar. Milhares de pessoas se candidataram. Meu irmão de 13 anos e minha mãe se inscreveram e partiram para os confins do país para cumprirem a tarefa. Após quase 1 ano, ao final da campanha, houve uma grande celebração na Praça da Revolução onde 1,5 milhão pessoas assistiam Mercedes Sosa cantando “Solo Le Pido a Diós” em festa pela conquista. A força daquela mulher era impressionante. Eu, no ombro do meu pai, jamais esqueci.

MaisPB – E sua passagem pela Alemanha Oriental?

Indiana Nomma – Em seguida, em 1984, já morando na extinta Alemanha Oriental, aos 8 anos de idade nas aulas de música, que era matéria obrigatória na grade escolar, minha professora, encantada por Mercedes, aproveitou que eu era nativa na língua hispânica para montar uma apresentação. Meu primeiro solo então foi “Canción con todos”. E meus colegas alemães cantaram comigo o refrão. E por influência de minha mãe, que amava La Negra, ouvi esse repertório por uma vida. Anos depois, quando eu já havia passado pela música erudita e entrara na “música da noite” cantando jazz, MPB e outros estilos, minha mãe descobriu um câncer de mama.

Para que ela tivesse forças para lutar contra a doença, decidi criar um show que contivesse no repertório todas as canções de que minha mãe gostava. Como “Alfonsina y El Mar” era sua preferida, o tributo a Mercedes Sosa surgiu ali. Porém, três dias antes da estreia, minha mãe veio a falecer. Então surgiu minha promessa pessoal de nunca mais deixar de cantar esse show e continuar homenageando as grandes mulheres da América Latina. Desde 2000 cumpro a promessa. Quanto ao timbre da Mercedes, na verdade ela canta mais agudo do que eu, mas a visceralidade impressa na interpretação vem do mesmo lugar: o amor pela terra, pelos povos originários, a força do povo latino-americano e a luta pelos direitos humanos.

MaisPB – Você está em Honduras, filha de pais brasileiros que se exilaram durante a ditadura. Vamos falar sobre essa história, nome de pai e  mãe – ainda moram lá?

Indiana Nomma – Infelizmente não. Meu pai faleceu em 2016 e minha mãe em 2000. Meus pais foram militantes comunistas que acreditavam nos anos 50 e 60 que a única solução para o Brasil era a guerrilha armada. Meu pai, Clodomir Santos de Morais, primeiro jovem a sair do interior de Santa Maria da Vitória na Bahia para se tornar “doutor”, tendo estudado em SP com Fernando Henrique Cardoso, havia sido Deputado Federal pelo PC do B em Pernambuco e foi um dos fundadores das Ligas Camponesas ao lado de Francisco Julião. Minha mãe, Eva Laci Camargo Martins, gaúcha, cujo nome de guerra era Célia Lima, vinha da juventude comunista do Rio Grande do Sul. Ele com 34 anos de idade e ela com 22 foram presos contrabandeando armas em 1962 e levados para a trágica Invernada da Olaria, onde foram cruelmente torturados um de frente ao outro em paus-de-arara e sob outros métodos que são inimagináveis. Só lendo a respeito para conhecer o nível de bestialidade que se pode chegar através do ódio e do “poder”. Em 1963, ao serem soltos, minha mãe foi a primeira mulher a denunciar a tortura na imprensa e em uma CPI, onde ela detalhou a barbárie que enfrentou como mulher nessa prisão. Em 1964, chegando a ditadura militar, foram novamente presos. Desta vez Clodomir, por ter cursado o nível superior ficou preso em Recife na mesma cela de Paulo Freire, fato este que lhes renderia uma amizade de uma vida e muitas teorias desenvolvidas a partir desse encontro. Dentre elas: “A Teoria do Oprimido” e “Método de Capacitação Massiva”. Minha mãe ficou presa em cela comum em Bangu e sofreu mais outro tanto de crueldades que são indizíveis.

MaisPB – E foram exilados, né?

Indiana Nomma – Sim, receberam asilo no Chile. Porém, por lá também chegava a ditadura e eles tiveram que fugir para o México. Entre idas e vindas pelos países da América Central, nasceram dois filhos mexicanos e eu vim a nascer em Honduras onde fiquei apenas 10 meses até voltarmos para o México onde ficamos por dois anos. Nessa época meu pai lançou o “Dicionário da Reforma Agrária”, pelo qual foi convidado a se tornar consultor das Nações Unidas (ONU), aceitando posteriormente convites para morar em Portugal, Nicarágua, Alemanha Oriental, até que voltássemos ao Brasil em 1987.

MaisPB – A sua identificação com Mercedes é notória, porque o disco demorou tanto se você já cantava a artista argentina?

Indiana Nomma – Minha homenagem é tão pessoal, é onde encontro as conexões com minha infância e família. E com tudo o que contei acima, não tinha a pretensão de me projetar largamente com ela. Ao contrário de meu trabalho de carreira, esse era aquele show e momento sagrado do ano em que decidia resgatar e me conectar à minha infância, às minhas raízes culturais, aos meus pais e irmãos. Eu ainda não tinha a menor noção de representatividade e da conexão que esse tributo gera entre as gerações e culturas por onde levo essas canções. Independentemente de ser eu que as canto ou não, no momento em que o público se conecta ao nome dela, a força é uma, a memória é uma. E é através das mensagens que estão nas canções escolhidas por ela que ocorre a abertura de consciência. Essa era a magia que Mercedes Sosa trazia no seu canto. Porém, como tudo em minha vida, o inusitado fez com que eu recebesse um convite através da produtora Regina Oureiro para uma live no Blue Note SP durante a pandemia. Teria que ser gravada em estúdio e aproveitei para captar o áudio. Somente quando terminou a gravação, raciocinei que eu tinha um disco pronto. Desse ponto em diante veio o desafio em encontrar um parceiro para realizar a liberação dos direitos autorais. Foi aí que contatei a Mills Records e o álbum nasceu.

MaisPB – Todo agradecimento ao violonista André Pinto Siqueira, que abrilhanta seu canto?

Indiana Nomma – Sim. Mas o Tributo a Mercedes Sosa ao longo desses 22 anos foi amadurecendo muito. Apresentei em várias formações distintas e com músicos de diversas nacionalidades. A primeira formação foi com o pianista uruguaio José Cabrera. Depois acrescentamos o baterista brasileiro Renato Glória. Por um tempo o filho do José Cabrera, Amaro Vaz, também trouxe sua mescla musical ao projeto. Até que convidei o violonista Paulo André Tavares e, em outra formação, Alberto Salles, ambos brasileiros e todos estes morando em Brasília. Por fim, quando me mudei para o Rio de Janeiro, conheci o André. Ele que é santista, morou em Porto Alegre e carrega em suas influências os sons da América do extremo sul. Talentosíssimo, sensível, com uma memória inacreditável tornou- se o parceiro desse projeto desde 2018. Com ele veio o ator Tomás Ribas, outro gaúcho que com seus textos e o bombo leguero em várias edições do show deu outro tom ao tributo. Por conta da pandemia, o álbum saiu em duo.

MaisPB – Como se deu a escolha do repertório?

Indiana Nomma – Foi bem difícil, pois os brasileiros ouviram um repertório da Mercedes Sosa muito mais limitado do que a América Latina conhece. Talvez pela barreira lingüista ou até mesmo falta de interesse político em integrar a língua espanhola com mais vigor nas escolas, o brasileiro não estuda a história dos países que o cercam. Então, apesar de eu conhecer o contexto de canções como “Yo Vengo a Ofrecer Mi Corazón” de Fito Paez, uma das músicas mais emblemáticas e críticas à ditadura argentina, o público brasileiro não compreendia a profundidade da letra. Então passei a escolher as mais conhecidas para os brasileiros e decidi compartilhar outras menos conhecidas, levando o conhecimento e a interpretação das letras para o show, até mesmo em Libras, para que assim a conexão ocorresse através de outros sentidos. Então o álbum contém clássicos da América Latina como “Gracias a La Vida”, “Volver a los 17”, “Alfonsina y El Mar”, “Años”, “Los Hermanos”, mas também tem “La Maza”, de Silvio Rodrigues e “Si Se Calla El Cantor”, de Horacio Guarany, músicas menos conhecidas pela plateia brasileira.

MaisPB – Não poderia faltar Gracias a La Vida, né?

Indiana Nomma – Jamais! Essa canção é um hino, uma oração, uma celebração e um alerta. Ainda mais depois de termos perdido tanta gente na pandemia. É um hino por que não importa que língua você fale, essa música foi cantada por Mercedes em vários países e tem uma energia de gratidão que todos sentem. Tive a oportunidade de cantá-la na Alemanha e na Itália e era uma comoção geral até naqueles que não falavam uma vírgula de espanhol. Uma oração porque gratidão é você reconhecer que você não controla nada e que tudo que você tem, vive e é tem origem em algo que é maior do que você. Portanto, agradeça. Uma celebração às mínimas coisas. Na primeira estrofe já fala do fato de termos dois olhos para abrir todos os dias. Estamos vivos. Celebremos.

MaisPB – Essa canção nos manda olhar para vida, né?

Indiana Nomma – É um alerta para que paremos de reclamar de tudo e de todos. Olhando para tudo o que a vida nos presenteia, um sorriso e um choro, podemos encontrar o equilíbrio. A sombra e a luz. O ying e o yang. Tudo junto formando uma só voz, que é a nossa voz. Violeta Parra convida para que aceitemos uns aos outros como nossas luzes e sombras, pois estamos todos aprendendo. É sem dúvida uma das canções imortais da América Latina.

MaisPB – Como veio a ideia do título – a voz dos sem voz?

Indiana Nomma – Mercedes Sosa recebe vários títulos na América Latina. Por escolher sabiamente canções que defendem a democracia, os direitos humanos e a voz de seu povo, camponeses, menos favorecidos, miseráveis e todos que precisam de ajuda, ela foi denominada “La Voz de Los Sin Voz” (tradução literal). Também é conhecida como “A maior voz da América Latina”, porque foi a única que cantou tantos e tantos compositores latino-americanos da nova e da velha geração e por tantos países. O que nos leva ao terceiro título, entre tantos outros: “La Baquiana Del Mundo”. Em espanhol, “baquiana” significa: aquele que conhece os caminhos, aquele que mostra o caminho. E ela se apresentou em mais de 60 países. Por isso recebe essa denominação. A prova desse último título é uma exposição de cartazes que a Fundación Mercedes Sosa, na Argentina, reuniu com posters dos shows que ela apresentou pelo mundo afora. Nove desses cartazes foram cedidos para o meu show para endossar o peso de tributo oficial.

MaisPB – Como foi o show no Teatro Rival Reffit?

Indiana Nomma – Foi intenso, forte e diferente de todos os outros. Como havíamos acabado de receber a notícia de que segundo a família da Mercedes Sosa, agora o show Mercedes Sosa: A Voz dos Sem Voz”, que eu apresento há 22 anos, se tornou o Tributo a La Negra, a responsabilidade aumentou muito. Senti a energia duplicada por essa consciência. E o público sempre generoso, como sempre, se emocionou, chorou, cantou e sentiu a conexão com Mercedes. Isso foi o mais importante.

MaisPB – Vamos enfatizar bem as histórias dessas mulheres, compositoras, poetas e guerreiras como Maria Helena Walsh, Alfonsina Storni, Juana Azurduy e, claro, Violeta Parra”, explica Indiana por que escolheu reverenciar Mercedes Sosa?

Indiana Nomma – Mercedes Sosa foi uma mulher simples do interior da Argentina que gostava de cantar e cresceu em uma época cercada de cultura latino-americana patriarcal e machista onde ser artista, cantora, era errado. Não era respeitável. Para participar de apresentações nas rádios, ela que fora registrada como Haydée, usava um pseudônimo para que seu pai não a descobrisse. Até que um dia o pai, ouvindo rádio, descobriu a mentira. Mercedes seguiu cantando e se casou com o músico e folclorista, Oscar Matus, com quem viveu uma relação bastante abusiva até conhecer o grande amor de sua vida, Santiago Villaverde. Escolhendo sempre canções do folclore argentino, já que era sua influência desde criança, com o tempo foi conhecendo outros músicos e com as ditaduras que avassalaram a América Latina, foi conhecendo poetas e compositores de outros países e suas histórias.

MaisPB – E tem a desigualdade permanente?

Indiana Nomma– Sim, percebendo a desigualdade social, as violências e as agressões aos direitos humanos e a quebra da democracia, ela mesmo então sendo exilada, arrancada de seu país, Mercedes mergulha cada vez mais em um repertório que resgate e mantenha acesa a voz do povo e dos menos favorecidos. Cantando, traz à tona compositoras, como: Violeta Parra, que teve sua história artística propositalmente quase toda destruída pela ditadura no Chile para tolher a voz das mulheres. Alfonsina Storni, uma poeta suíça, radicada na Argentina, cujos poemas traziam a conscientização sobre a importância da mulher. Juana Azurduy, uma boliviana de origem indígena, que lutou pela libertação da América Latina, contra os colonizadores espanhóis após seu marido ter sido preso pelo inimigo. Ela liderou o exército de seu marido e venceu. Morreu quase no esquecimento. Maria Helena Walsh, cuja canção “Como La Cigarra” é um alerta contra a violência que ainda é praticada contra nosso gênero. Enfim, ela colocava holofotes sobre a força das mulheres, lutando contra a invisibilidade por tantos séculos imposta. Além disso, transformava em suas canções de compositores menos conhecidos e interpretava qualquer música de tal forma ímpar, que passava a ser sua. Acho que uma das músicas mais emblemáticas de seu repertório é “Yo vengo a ofrecer mi corazón” de Fito Paez. Essa canção foi composta para dar alento a todas as famílias dos desaparecidos durante a ditadura argentina. Em certo trecho fala “… tanta sangre que se llevó el rio…”, “…tanto sangue que o rio levou”, citando a barbárie que os militares cometiam amarrando pedaços de cimento ao corpo de milhares de pessoas vivas e jogando-as de aviões no Rio da Prata. A interpretação da Mercedes é de cortar o coração. Única. Capaz de calar e envergonhar qualquer ser humano, por sabermos do que somos capazes de fazer uns com os outros. Essa era e segue sendo Mercedes Sosa. Sempre trazendo consciência, alento, força, esperança, alertas, tudo através de sua voz. Quando precisei dar forças à minha mãe, foi a fonte de Mercedes que escolhi. Não só para ela, mas para mim também. E ao longo dos anos fui constatando que não se trata só de nós duas, mas de todo um sagrado feminino e masculino que se une através da voz de La Negra. Nos shows isso é claramente perceptível. Somos todos um ao celebrar a mensagem dela.

MaisPB – Como se deu a chegada do neto de Mercedes Sosa, o produtor cultural Agustin Matus, nesse seu trabalho?

Indiana Nomma – Creio que foi em 2012 que Agustin me telefonou. Eu morava no Rio de Janeiro e sua filha Lara, que é carioca, tinha aulas de canto com uma professora que falou de mim para ele. Ela lhe contou que havia uma cantora que apresentava um tributo há muito tempo à avó dele e que tinha uma história de vida parecida com a da família de Mercedes Sosa. Lembro que quase caí para trás ao ouvir a voz dele, pois era o contato mais próximo que eu tinha tido com a família dela. Imagine o que isso significa para uma fã. Ao nos encontrarmos ele conheceu meu trabalho passando a apoiar através da Fundación Mercedes Sosa o meu show com o apoio moral e também cedendo pôsteres da exposição “La Baquiana Del Mundo” para meu cenário. A partir daí toda a torcida da família dela só aumentou. Até que agora em 2022 recebi a declaração de que o tributo que apresento, se tornou oficial, segundo os herdeiros, por conta do espanhol nativo, o figurino e toda a forma de apresentar essa homenagem. Um orgulho para mim.

MaisPB – Indiana Nomma acredita que as coisas vão melhorar, o mundo anda tão cinzento?

Indiana Nomma – “Cambia… todo cambia…” Assim diz a canção de Julio Numhauser que Mercedes Sosa cantava. Nada é permanente. Aprendi isso anos atrás no budismo e sem dúvidas, se observarmos tudo à nossa volta, inclusive a vida, nada é permanente. E ao passar por tantos palcos, cantando esse repertório e ver sempre a casa cheia, cantando e chorando comigo, acredito que cada vez mais a empatia, o amor incondicional, a compaixão e a esperança se tornam presentes. Parece que não, mas agora vemos as sombras que desconhecíamos surgindo. Beira a incredulidade. Mas é exatamente o cair das máscaras que faz com que enxerguemos e distingamos “así yo distingo dicha de quebranto”, como dizia Violeta Parra: “assim eu distingo energia plena de falta de fraqueza”. Agora vemos o que estava no escuro, o que agia nas sombras para que possamos curar. E não há força maior que o bem e o amor. Tudo muda, tudo passa. Isso é fato.

MaisPB – Você gravou Volver a los 17 (de Violeta Parra), inspirada na gravação de Mercedes e Milton Nascimento?

Indiana Nomma – Na verdade, não. Essa canção é um hino dos exilados e da América Latina. E já ouvia desde que morava na América Central. Só fui conhecer a versão de Milton e Mercedes quando estava com uns 18 anos de idade. Foi quando me afastei um pouco da fase roqueira para ouvir MPB. Foi então que conheci Chico, Caetano, Gil e Milton.

MaisPB – Quem são os artistas brasileiros que você admira?

Indiana Nomma – Complicada essa pergunta. Sou tão de fases e de tantos gostos e sabores, que a cada estado emocional meu, gosto de uma coisa. E o Brasil é rico demais com tantas culturas distintas. E sempre tive predileção pela música independente. Porém se eu for tentar citar o que escuto com mais constância, chego a artistas que ouço sempre ao longo dos últimos 26 anos. São eles: Da MPB, chego às intérpretes do Olimpo, como chamo as divas que conheci criança, Leny Andrade, Elis Regina, Áurea Martins, Elza Soares, Eliseth Cardoso. Das mais recentes, Mônica Salmaso, Rita Benneditto. Das ainda desconhecidas da grande mídia: Fernanda Santanna e Liz Rosa. Das compositoras: Zélia Duncan, Fhernanda Fernandes e Angela Brandão. Dos compositores: Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano, Tom Jobim, Ed Motta, Tim Maia, Djavan, Victor Ramil, Eduardo Rangel e Wagner Malta. Do rock brasileiro: Legião Urbana. Do blues: Nuno Mindelis. Da bossa nova instrumental: Osmar Milito e Gilson Peranzzetta. Da bossa nova cantada: Cris Delanno e Bossa Cuca Nova. E se eu for entrar nos outros estilos, nossa… terei que escrever um livro.

MaisPB – Ficaram muitas canções de fora?

Indiana Nomma – Sim. Inúmeras. Com certeza terei de gravar seqüências desse álbum, pois o repertório da Mercedes toca em lugares da alma que não podem ser silenciados. Queria ter gravado “Sueño com serpientes”, de Silvio Rodriguez, “Yo vengo a ofrecer mi corazón”, de Fito Paez, “Cuando tenga la tierra” de Daniel Toro e tantas outras “que não as posso contar”…”que no los puedo contar”.

MaisPB – Quem é Indiana Nomma?

Indiana Nomma –“Uma mulher que merece viver e amar como outra mulher do planeta.”… Parafraseando Milton, acho que posso me definir assim. Uma mulher como todas as que conheço, com inúmeras histórias particulares vivenciadas ao longo da vida, colecionando dores, alegrias, facetas, inconstâncias, firmezas e esperanças e que sempre está em constante mutação. Venho de uma linhagem aguerrida de indígenas, africanos e brancos, que carregam um pulsar muito forte sobre o que é a importância da luta pela sua terra e pelo seu povo. Sou mãe solteira de um filho médico criado e formado através da música e de toda essa energia que corre em minhas veias e que me fez sempre renascer, ressurgir, para seguir cantando. Passei por 30 países, morei em dois continentes distintos, renasci muitas vezes, vi muita coisa linda e triste pelo mundo. E sendo ariana, com ascendente em escorpião e lua em leão, transcendo todas as vivências, a força e intensidade da minha personalidade no canto e é claro, na terapia… risos… Mas sendo artista, entendo que a música não é minha. Sou só um veículo, apenas um instrumento dessa arte que tem como objetivo levar luz, alegria e consciência a quem precisa. Acredito plenamente que a música cura, pois sempre me curo quando canto. E uso uma das minhas facetas como terapeuta holística de horas vagas, aplicando Reiki, uma prática japonesa integrativa da saúde, durante os shows para a plateia. Isso me gera um bem-estar tremendo e a potencialização do alcance energético da música para quem ouve e assiste. E por fim, posso citar Simone de Beauvoir: “Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.”.

Assista aqui Indiana Nomma cantando Gracias a la vida  de Violeta Parra