João Pessoa, 26 de outubro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Vanildo Brito costumava me ligar tarde da noite. Perguntava pelo clima de minha Comarca, sempre com estas palavras curiosas: “E, lá em nós, tem chovido?”.
Caririzeiro como eu, só que lá das bandas de Monteiro, guardava, dentro de si, o gosto da terra árida, o uivo dos ventos, o silêncio das pedras e, mais que tudo, a “verdade vazia e perfeita” dos céus de verão, azuis e imaculados, que cobrem os rios e riachos temporários, as serras e as planícies distendidas por uma geografia sem fim.
Este mundo distante está bem representado nos alcantis de seus versos longos, tocados, aqui e ali, pelas mãos sagradas da melhor poesia telúrica. Se há, nos seus poemas, a vertente lunar e oceânica dos motivos metafísicos, como uma de suas faces mais sólidas, há, de outra parte, a índole solar e agreste que traz, para dentro de seu ritmo lírico, o “claro enigma” da paisagem desnudada em sua desolada e melancólica beleza.
Naqueles solitários telefonemas, o chão natal como que voltava de sua origem mítica, com seus emblemas ritualísticos, seus símbolos litúrgicos, seus idiomas feitos de sol, cinza e poeira, na miragem das lembranças mais longínquas.
Como Vanildo Brito era poeta, uma das maneiras de ele se relacionar com o mundo consistia no socorro da recordação. Recordação enquanto categoria lírica por excelência, uma vez que, só pela recordação é possível trazer, de volta ao coração, as coisas do mundo. As dores e as alegrias que passaram; os afetos e os sonhos que se foram; aquilo que poderia ter sido e que não foi, como nos diz o antológico verso de Manuel Bandeira.
O poeta me falava dos invernos de sua terra, das ruas largas de sua terra, da oralidade poética de sua terra. Falava-me, também, de seus costumes e crendices, de suas tardes mornas, de suas noites espantadas, de suas criaturas simples e mágicas, condenadas à liberdade do dia a dia.
O pai Sumé, imperador único dos vales e montanhas daquela região inóspita, reinava na regência da música medida de sua dicção poética. O rio Paraíba lhe deu um dos mais belos e intensos poemas da lírica local, principalmente pelo que contém de eficácia estética e de valor filosófico, sem qualquer teor doutrinário nem qualquer apelo pedagógico.
Vanildo Brito era um poeta culto. Ao poeta se associava o ensaísta, o estudioso da filosofia e da teoria do sagrado, o leitor incansável de Nietzsche que, na rotina do lar e em alemão, devorava as páginas do Assim falou Zaratustra naquela típica intimidade dos eleitos. Isto sei porque vi e porque testemunhei sua paixão por idiomas complexos, como o russo, o grego e o latim.
Certa feita, por exemplo, já doente num leito de hospital, recitou, para meu deleite, um poema de Puschin no original, comentando, em seguida, as nuances da cadência dos vocábulos, a lógica das acentuações e os problemas intrínsecos à métrica e ao ritmo. Também neste capítulo, não devo esquecer a sua tradução hexamétrica de textos de Da natureza das coisas, de Lucrécio, que levou Francisco Pereira Nóbrega a afirmar: “{…} Tamanha aventura intelectual valeria em universidades europeias um título de doutoramento em letras”.
Não foi por acaso, portanto, ter sido o epônimo de uma geração. A Geração 59, responsável, aqui na Paraíba, pela procura de uma nova estética e por uma das mais agudas reações contra os paradigmas artísticos do passado. Geração que deu, entre outros, e a se considerar os nomes que integram a antologia homônima, um Jurandy Moura, um Luiz Correa, um Celso Almir Japiassu, um Tarcísio Meira César e um Jomar Morais de Souto.
Num daqueles telefonemas noturnos, confessou-me uma curiosa idiossincrasia de sua personalidade literária. Disse-me que gostaria muito de ter sido mais conhecido na sua terra como poeta. Dias depois, em outro telefonema, disse-me que gostaria de ser conhecido como poeta apenas na cidade de João Pessoa onde residia há muitos anos. Para ele, isto já bastava. Fiquei matutando no pequeno infortúnio do poeta.
Passado algum tempo, atendo outro telefonema de Vanildo Brito, depois da meia noite. O que ele me disse dessa vez? Ora, disse-me que desistira de ser conhecido como poeta na sua terra e na sua cidade. Bastar-lhe-ia ser conhecido tão somente no seu bairro, na sua rua ou mesmo no seu prédio!
Este foi um dos últimos telefonemas que recebi. Imagino quantas pessoas o viram de perto, conheceram o homem e nunca o poeta.
* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB
OPINIÃO - 22/11/2024