João Pessoa, 17 de novembro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Nunca um tema como o aborto foi tão falado e discutido nos últimos tempos, servindo até de bandeira política, o que não é o caso de discussão nesta narração. A vida sempre foi um fenômeno estudado por diversas correntes e teorias científicas. Todas tentam explicar e justificar o brotar da vida e a razão de viver. Um dos protagonistas foi o psicanalista Sigmund Freud, grande estudioso da alma e seus mistérios. Concedeu entrevista ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926, para a edição especial do “Journal of Psychoanalytical Psychology”, de Nova Iorque. Falou com profundidade sobre a vida e a morte como uma consequência. impulsos de vida e de morte habitam lado a lado. Ao dizer isso, descortina o viver e as convivências, a da família e com ela apreciou a natureza, o pôr do sol etc. Quanto à velhice, entende que, com suas agruras, abate a todos e por aí vai…
Onde reside o verdadeiro valor da vida? Não há dúvida que tem um valor, assim como a paz, o amor, o prazer de viver, enfim tudo que faz a vida florescer. Há, no entanto, situações que comprometem esse valor, como: miséria, ansiedade, egoísmo, intolerância etc. O dinheiro pode comprar inúmeras coisas, todavia o que está vinculado ao sentimento é inegociável, como: comprar uma cama confortável, mas não poder comprar o sono; comprar comidas gostosas, mas não o apetite; comprar uma residência suntuosa, mas não se compra o lar, compra-se remédio, mas não se pode comprar a cura. Compra-se roupas de grife, mas não se pode comprar a elegância, etc. Saint-Exupêry escreveu que “Apesar da vida humana não ter preço, agimos sempre como se certas coisas superassem o valor da vida humana”. Se pararmos para refletir constatamos que nada tem mais valor que a própria vida. Ela é o nosso maior bem. Às vezes não damos significado àquilo que não envolve bens materiais, e que são os que nos levam à felicidade. Esquece-se da importância de viver um momento com amigos, compartilhar emoções, realizações e vitórias alcançadas, abraços, beijos e momentos felizes que ficam na memória eterna e que não se repetem. São únicos.
Disse do valor da vida para falar do aborto que é a sua negação. Falo da interrupção da gravidez resultante da remoção de um feto ou embrião antes deste ter a capacidade de sobreviver fora do útero. Realizado, intencionalmente, por motivos pessoais, aquela gravidez se torna indesejada, um empecilho ou constrangimento diante do contexto político, social e moral em que as pessoas vivem. O aborto é uma forma de evitar. Aqui não há propósito de abordar e aprofundar a discussão nas diversas formas de aborto. Numa sociedade conservadora, além das leis que regulamentam a matéria existe o componente religioso que o considera assassinato de uma criatura inocente e indefesa.
Conheci Júlia no rol do meu prédio, esperando um Uber. A partir daí sempre estávamos a bater um papo e em conversa relatou-me o caso de sua sobrinha Valéria, que achei muito pertinente para o momento em que se vive a polêmica do aborto. Fala que sua irmã vivia em situação de pobreza no interior do Estado, era sacrificada, foi quando um familiar que morava no sul do país tomou conhecimento de uma vaga na empresa em que trabalhava. Convidou Mariana, filha de Valéria, para ir trabalhar lá. Aqui, sem perspectivas, viu naquela oportunidade uma chance de mudar sua vida. Foi embora e empregou-se. Com 17 anos começou a namorar um rapaz, apaixonou-se e engravidou. O namorado não quis assumir o filho e queria obrigar Mariana a abortar. Momento difícil em sua vida, mas, depois de pensar, decidiu não fazer o aborto e criar sozinha aquele filho. Não teve outra alternativa, a não ser voltar para a Paraíba. Chegando aqui sua irmã mais velha, que residia na capital, a acolheu. Teve a filha Jane. Conseguiu trabalho de balconista em uma grande loja, onde permaneceu por longos anos. Casou-se com um militar, teve com ele dois filhos. Após dez anos seu marido falece num acidente de moto, deixando-a viúva.
Mariana vivia muito desolada. Com muito sacrifício conseguiu encaminhar seus três filhos. A Jane, que foi criada sem saber quem era o pai, com dezessete anos namorou um rapaz, engravidou e o namorado reconheceu a menina, Flavia, mas não tinha nenhuma responsabilidade de mantê-la. O fato se repete. Mariana, mulata muito bonita, vivia em depressão por que desde que enviuvou perdeu a graça e se fechou para o mundo. Os filhos todos grandes e encaminhados, menos Jane e a neta Flavia que moravam com ela. Um dia a vizinha Ana Alice convidou-a para a comemoração do seu aniversário, idealizado pela irmã chegada de Portugal. Mariana relutou em ir, mas terminou indo. Na festa tiraram muitas fotos, num ambiente alegre e prazeroso. Ao retornar a Portugal, Penha, vizinha de Mariana, mostra as fotos e um dos amigos. Joaquim, que ao olhá-las, ficou impressionado com Mariana. Ele, que também tinha sofrido uma desilusão no casamento, encontrava-se em depressão. Interessou-se e quis comunicar-se com ela. Passaram três meses se relacionando pela internet. Foi quando Joaquim resolveu vir ao Brasil para conhecê-la. Permaneceu aqui por quinze dias e prometeu que mandaria passagem para ela ir passar as festas do fim do ano em Portugal. E assim se deu. Na volta, Mariana marcou o casamento e em fevereiro casaram indo residir em Aveiro – Portugal.
Mariana está bem instalada na cidade de Aveiro, onde Joaquim é engenheiro de uma grande empresa, na qual também Mariana empregou-se. Às vezes Mariana ficava triste, pensativa, e em conversa com ele relatava sua saudade da filha Jane e da netinha Flavia. Revelou a sua história até então oculta. Joaquim. ao tomar conhecimento, disse: “você permite que eu seja o pai de Jane? O que foi depressa respondido, sim. Joaquim imediatamente telefonou para Jane no Brasil e fez a proposta: “Jane você aceita que eu seja seu pai? Ela falou: foi sempre o que quis ter um pai. Ele afirmou: você até hoje não teve um pai, mas a partir de agora, vai ter.” emocionou-se bastante, pois em sua casa seus irmãos tinham pai e ela não, o que a deixava muito desolada. Vivia na sombra de seus irmãos, trabalhava, mas o ganho era pouco, tinha de contar com a ajuda deles.
Com quinze dias Joaquim mandou buscar Jane e Flavia, registrou Jane como filha, hoje com 21 anos. Já frequenta uma faculdade. O seu relacionamento com Joaquim é harmônico. Quando saem juntos dizem que Flavia parece com o avô. A netinha, com quatro anos, é a alegria da casa. O resto da família, no próximo mês de dezembro viaja a Portugal para lá fixar residência. Constato que Mariana está feliz, como também Joaquim, que preencheu sua vida e nunca mais teve depressão, encontrando a razão de viver. A contagem é regressiva, não se vê a hora de ter reunida toda a família. Vejam, se Mariana não deixasse Jane viver, esta história jamais seria contada. Vamos valorizar a vida!
Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP)
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OPINIÃO - 22/11/2024