João Pessoa, 23 de novembro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Leio, em Leyla Perrone-Moisés (Vivos na memória, 2021), que, “quando Avalovara saiu em francês, Julio Cortázar (foto) afirmou que se tivesse escrito aquele romance não escreveria mais nada por vinte anos”.
Simples boutade de escritor? Mera frase de efeito? Ou uma maneira pouco comum de elogiar um autor, no caso, o pernambucano Osman Lins?
Não sei.
Pode ser uma coisa e outra, ou todas ao mesmo tempo. Principalmente se quem se expressa é também um artista da palavra que tem, no rigor da construção e no brilho da frase, um dos imperativos do ato criador.
De minha parte, quero crer que o escritor argentino apenas manifestou um apreço justo e singular pela prosa geométrica de Osman Lins, sem que isto absolutamente pudesse tolhê-lo na consecução de seus contos e romances geniais.
Uma grande obra literária pode, talvez, inibir o fluxo da criação de um escritor ou de um poeta, porém, lembremos de Roland Barthes, para quem um bom texto engendra quase sempre outro texto. Se pior ou melhor que o anterior, isto já fica por conta do talento de quem o escreve.
Se as grandes obras artísticas podem inibir, podem também estimular. Afinal de contas, não se faz nada sem o contributo da tradição, mesmo que seja para destruir seus modelos ou para reinventar os seus caminhos.
Não consigo pensar em Virgílio, por exemplo, sem Homero; em Camões, sem Virgílio; em Jorge de Lima, sem Camões, Dante, Virgílio, Homero, só para me reportar ao filão épico da literatura ocidental e seus exemplos canônicos.
Creio mesmo não existir obra literária sem as marcas da herança, sem o toque incontornável do passado. Mesmo aquelas que se querem de pura invenção, com seus apetrechos de vanguarda, com seus inusitados experimentalismos, não escapam ao cerco implacável da ancestralidade.
Northoph Frye afirma que a literatura se faz da literatura. Parece impossível, portanto, escrever alguma coisa sem a sombra, às vezes imperceptível, dos antecedentes que fundam e abrem o leque das novas vozes e dos novos talentos individuais. Daí porque a corrente viva da tradição, como num jogo de espelhos onde se reflete a imagem plural das semelhanças e das diferenças, mantém sua continuidade feita de sucessões, cortes, transgressões, rupturas, invenções e circularidades.
Neste debate, nomes como os de T. S. Eliot e Harold Bloom não podem ser esquecidos. “Talento e tradição individual”, do poeta anglo-americano, é o ensaio decisivo em que se elabora a síntese dessas questões, assim como o livro A angústia da influência, do crítico norte-americano, concentra os fundamentos teóricos do problema, sobretudo em torno da criação poética.
Técnicas textuais, procedimentos estilísticos, táticas imagéticas, estratégias discursivas, retomadas de tópicas temáticas, leituras e releituras, tudo me leva a pensar na dimensão dialógica e conflitante da literatura, no espaço, sempre renovável, de encontros e desencontros, de perdas e ganhos, numa malha temporal onde os fatos diacrônicos se acomodam a uma estranha sincronia.
Se Harold Bloom traz à tona o embate entre os poetas fracos e os poetas fortes, T. S. Eliot, jogando com o talento e com a tradição, sustenta que nenhum poeta pode ser conhecido sozinho, ao mesmo tempo em que a nova obra vinda a público como que reordena o sistema literário.
Conclusão: não se escreve sem os outros, não se cria uma obra sem obras anteriores, não existe o talento sem a tradição.
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OPINIÃO - 22/11/2024