João Pessoa, 24 de maio de 2012 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Para a grande maioria dos egípcios, a derrubada do ditador Hosni Mubarak abriu grandes possibilidades para a construção de uma nova ordem social, mais adequada às demandas de grupos sociais politicamente marginalizados. Ao mesmo tempo, não são poucos os que acreditam que a janela aberta pela queda do presidente parece estar indo no caminho oposto àquele que muitos dos mais árduos revolucionários acreditavam.
Em meio a debates em torno da proibição do direito das mulheres pedirem divórcio, de proibi-las de sair de casa desacompanhadas de um homem ou da legalização da mutilação genital feminina, é compreensivo o medo e a preocupação das feministas no Egito, em meio à primeira eleição presidencial do período pós-Mubarak, cujo primeiro turno termina nesta quinta-feira (24).
Em meio a um ambiente único para se expressarem socialmente, as mulheres do país se encontram presas no dilema entre o apoio às antigas garantias da ordem pré-revolucionária e as incertezas e esperanças do Egito pós-Mubarak.
Um 8 de Março para esquecer
Era para ser um dia memorável. Menos de um mês após a queda de Mubarak, em 11 de fevereiro de 2011, o Dia Internacional da Mulher, no 8 de março, seria a primeira vez que aquela geração comemoraria sua data nas ruas. A última manifestação pública feminista no Cairo ocorrera havia quase 100 anos, em 1919.
A marcha, que aglutinava algumas centenas de pessoas, talvez atingindo mil em seu pico, continha algumas distorções. Além de uma quantidade memorável de estrangeiros, a marcha possuía mais homens que mulheres, alem de uma quantidade desproporcional de jornalistas. Caminhando pelas ruas do Cairo, sendo muitas vezes insultadas pelos homens que com ela se deparavam, não foi até o final de seu trajeto, na Praça Tahir, que a marcha se tornou uma verdadeira cena de barbárie.
Ao chegar à emblemática praça, enquanto a manifestação se esvaziava, um grupo de homens crescentemente descontentes com o desenrolar dos eventos começou a cercar e debater de forma calorosa com as mulheres. Sob os argumentos de atacar a família, desejar retirar os véus de suas mães e abandonar as crianças, os homens, que agora cercavam as mulheres, pareciam cada vez mais violentos. Quando um xeque islâmico se aproximou da discussão e declarou a manifestação um pecado, foi dada a luz verde para o ataque.
No meio da Praça Tahir, então simbolo da recém-conquistada liberdade nacional, em plena luz do dia na data marcada para comemorar as lutas sociais das mulheres, dezenas de homens atacaram fisicamente as manifestantes feministas.
Não houve estupro, porém todas as mulheres foram apalpadas por grupos de homens que tentaram despi-las. Enquanto as ativistas e alguns homens simpáticos à causa batalhavam no centro da cidade contra os agressores, o Exército e a polícia apenas assistiam à distancia às cenas de horror.
“Foi a primeira marcha feminista em muito tempo, sabíamos dos riscos que corríamos”, disse May Kamel, uma jovem revolucionária de 25 anos. “Porém, obviamente, quando diversos homens pegaram no meu corpo inteiro, tentando tirar minha roupa, a sensação foi de derrota.”
Entre ordem e revolução
May, uma ardente apoiadora da derrubada de Mubarak, tem passado por um processo de reavaliação política da revolução com o crescimento das forças islamitas. Altamente secular, a jovem, além de deixar o cabelo descoberto, bebe e fuma, costumes sociais pouco adequados à maré islâmica que vem atingindo o Egito. Após o triunfo islamita nas eleições parlamentares, e testemunhando uma discussão cada vez mais intensa sobre a aplicação da lei islâmica no país, May pretende, nas eleições para presidente, votar em Amr Mussa, ex-ministro do presidente deposto.
“Temos que minimamente garantir nossos direitos, não quero viver em um país no qual não possa sair de casa por ser mulher”, disse. Inicialmente simpática ao candidato islamita moderado Moenem Abdel Fotouh, May hoje se revela preocupada com as chances de ele ganhar as eleições. “As declarações do Fotouh são cada vez mais ambíguas, cada vez mais confusas, acho que na prática existe pouca diferença entre ele e os islamitas mais radicais.” Temerosa pelo futuro das mulheres e das minorias sociais do Egito, a jovem teme mais os islamitas que os representantes da antiga ordem.
Mubarak e sua mulher
Militar da aeronáutica, Mubarak, com todas as suas contradições, era no limite um dirigente secular. Apesar de ter sempre tolerado a Irmandade Muçulmana, e até fortalecido setores mais conservadores que ela, como os ultraortodoxos salafistas, Mubarak manteve ao longo de todo seu regime um verniz secular que, em parte, servia para legitimá-lo. Jogando a carta do medo, o ditador sempre enfatizava o risco de uma ascensão islamita no caso de sua saída do poder. Ascensão essa, inclusive, parcialmente construída pelo ex-presidente.
Em meio aos argumentos de um regime secular, a mulher de Hosni, Suzanne Mubarak, desempenhava um papel crucial no arranjo desta ordem. Tida como uma mulher firme e poderosa, Suzanne dirigia, durante o reino do marido, o Conselho Nacional das Mulheres, o grande guarda-chuva do movimento feminista do país.
Abastecido com dinheiro do governo e contando com apoio da ONU, o órgão, na prática, servia para cooptar as feministas do país, cedendo assim legitimidade aos donos do poder. Não que o conselho não contribuísse pontualmente com as questões feministas, ou que não fizesse trabalhos importantes, mas seu papel social parecia mais o de enquadrar ativistas mulheres dentro de uma perspectiva pró-regime que o de avançar a luta feminista.
Na esteira de construir a figura de Suzanne, qualquer legislação que aumentasse o escopo dos direitos das mulheres no país era posta sob sua responsabilidade. Não por acaso, as leis que ampliam o direito das mulheres no que dizia respeito à custódia de seus filhos, ou que tocavam no tema dos direitos das mulheres no divórcio, foram batizadas de “Leis Suzanne Mubarak”.
Com a mudança de direção do país após a queda do presidente e a tomada do Parlamento pelos islamitas, as “Leis Suzanne Mubarak” logo entraram na pauta dos radicais islâmicos. Alegando ser uma herança do antigo regime, a Irmandade e seus parceiros ultraortodoxos salafistas começaram a se movimentar para retirar direitos das mulheres sob a argumentação de continuar e aprofundar a "desconstrução" do legado da ditadura.
“Suzane Mubarak nunca se interessou por direito algum das mulheres”, afirma a feminista Mariam Kirollos, de 22 anos. “As leis levam o nome de Suzzane porque tudo aqui era personalizado na figura do presidente. Temos até uma cidade chamada Mubarak. Estamos falando sobre leis do divorcio e guarda familiar, e só!”, disse, de forma enfática.
Maracatu brasileiro
Organizadora de um suposto ‘maracatu’, que com apenas dois tambores anima as manifestações egípcias, Mariam, que se inspira abertamente na musicalidade brasileira, boicotará as eleições presidenciais do país. “Este processo está aqui só para legitimar os islamitas e os militares, que estão mais do que dispostos a fazer acordos entre si”, disse.
Pouco interessada no processo eleitoral, Mariam se recusa a fazer um voto útil contra os islamitas. “Estas eleições não têm nada a ver comigo, com meus direitos enquanto mulher e com a nossa revolução. Nossa luta se dá na rua, não nas urnas”, disse, com ar de rebeldia.
Um outro Dia da Mulher
Passado um ano do desastroso 8 de março de 2011, a manifestação ocorrida no ano seguinte foi caracterizada pelas organizadoras com um evento vitorioso. Em uma marcha muito maior que a do ano passado, contando com cerca de 5 mil ativistas, a manifestação, em vez de parar na Praça Tahir, terminou diante do Parlamento. Com uma presença feminina egípcia muito mais acentuada, a marcha possuía enquanto principal objetivo revindicar que a constituinte egípcia tivesse, no minimo, 50% de mulheres em sua elaboração.
“A ausência de mulheres no Parlamento já está sendo sentida por todos”, disse Sally Zohney, que, ao lado de Mariam, participou ativamente na organização do 8 de Março. “A ausência de mulheres implica que ninguém está discutindo questões da saúde da mulher, de direitos de família e diversas outras coisas."
Dirigente da Baheya, uma organização feminista surgida no inicio deste ano, Sally tem mobilizado o movimento para a disputa da Assembleia Constituinte, que será selecionada pelo Parlamento.
“Quando inicialmente falamos em uma assembleia composta por 50% de mulheres, praticamente todos acharam a questão uma loucura. Lentamente fomos nos inserindo na mídia e nos espaços públicos com nossas discussões, e hoje, por mais que a questão esteja longe de ser consensual, ela está presente em todos os debates.”
Fé revolucionária
Ao contrário de muitas de suas companheiras, Sally é profundamente otimista em relação ao futuro das mulheres no Egito. “Há uma revolução nas ruas, com capacidade de barrar qualquer ataque aos direitos das mulheres”, disse.
Mesmo frente a possíveis retrocessos históricos, como a abolição da lei que permite a mutilação genital das mulheres (chamada pelos islamistas como “circuncisão feminina”), Sally insiste em apontar para o enorme processo de transformação social fruto do engajamento popular na política.
“Antes, durante os anos de Suzanne, ninguém discutia a questão do feminismo, dos direitos das mulheres. Hoje, o debate, a transformação da mentalidade, está ai. Esse processo é mais forte e poderoso que qualquer governo islamita, que certamente não conseguirá se impor sobre mulheres radicalizadas e politicamente organizadas” disse.
G1
OPINIÃO - 22/11/2024