João Pessoa, 14 de dezembro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Se você possui uma biblioteca, é preciso conhecê-la bem. Conhecê-la nos seus aspectos físicos e materiais, atento à disponibilidade espacial de sua geografia livresca, periodística e documental. Saber, por exemplo, dos segredos bibliográficos que disciplinam a ordem dos livros em cada estante, em cada prateleira, certo de que existe uma secreta hierarquia presidindo a companhia inesperada de volumes, autores, coleções e demais categorias que dão vida à vida das bibliotecas.
Neste sentido, a biblioteca é como uma cidade, uma região, um país, o universo. Jorge Luís Borges, que foi bibliotecário, via, na biblioteca, uma metáfora do mundo. Quem a possui, portanto, tem de viajar por todos os seus recantos, frequentando, ora, os mesmos lugares, numa revisitação embalsamada pela amorosa intimidade com certas páginas, certos tomos, certos opúsculos que nos revigoram o misterioso prazer da leitura; ora, descortinando paisagens novas, desconhecidas, surpreendentes, que nos ajudam a recompor nosso olhar sobre as coisas, e, entre essas coisas, as mais preciosas, os próprios livros, os livros, nossos amigos, como diria Eduardo Frieiro.
Essa viagem é fundamental exatamente porque delimita as fronteiras de sua topografia e estimula o bibliotecário a uma contínua e permanente relação orgânica com o acervo formado ao longo dos anos.
Nessa manhã de sábado, por exemplo, tudo convoca para um passeio pela várzea do rio Paraíba, tocando os cuidados e Zé Lins na descrição da cheia, do apito do trem, do crepúsculo melancólico divisado dos alpendres da Casa Grande, ou das noites agônicas do mestre Zé Amaro, amarelando o desgosto da loucura.
Do engenho Corredor pode-se deslocar para o Pau d`Arco e soletrar a métrica áspera, porém, melódica, dos versos de Augusto dos Anjos, sobretudo aqueles versos que ventilam os raios furiosos do sol deflorando o verdume da terra estrumada e luxuriosa, assim como do gosto azedo da cana carregada pelo finado Tôca.
No domingo à tarde, a viagem pode ser mais longa. Desta feita são as estepes selvagens da Sibéria a nos ofertar o drama insuperável dos personagens de Tchecov e Dostoievski. De Sebastopol para São Petersburgo distam muitas léguas, léguas imensas, léguas infinitas, léguas brancas, comprimidas, no entanto, pela lógica aliciante e mágica da proximidade espiritual e estética que só uma biblioteca, na líquida alquimia de seu ordenamento, pode promover.
E daí, aquele que possui uma biblioteca, aquele que ama os livros, pode, sim, explorar, não apenas a sua organização material, mas, sobretudo, os sinais simbólicos e inumeráveis que constituem as informações, o conhecimento, a sabedoria. A viagem, agora, ultrapassa os limites do toque, da manipulação, da limpeza, da contemplação e de tudo aquilo que, nos livros, nos chama a atenção pelos ingredientes sensíveis que os fazem refinados objetos de desejo.
Viajar agora e viajar assim é penetrar, fundo, no miolo das imagens e no tutano das ideias, para refazer, no movimento fixo e flexível da leitura, a matéria mesma da vida. Em certo sentido, possuir uma biblioteca é uma maneira de viver.
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OPINIÃO - 22/11/2024