João Pessoa, 28 de dezembro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Dimas Macedo e Daniel Mazza, dois cearenses e dois livros à mesa. O de Dimas, uma coletânea composta de artigos, crônicas, entrevistas, perfis, prefácios, testemunhos, discursos e pequenos ensaios, intitulado Trinta navios (Mossoró – RN: Sarau das Letras, 2021); o de Daniel, um livro de poemas, ou melhor, e mais precisamente, um poema, com o título de Sacrificium (Itabuna – BA: Mondrongo, 2021).
Dimas Macedo também é poeta, autor de uma obra já consolidada e com diversos títulos, dos quais destaco, entre outros, A distância de todas as coisas (1994), Estrela de pedra (2005), Vozes do silêncio (2003), Sintaxe do desejo (2006) e O rumor e a concha (2009). Aqui, no entanto, comparece, exercitando a prosa, diria entre jornalística e literária, para atender ao compromisso crítico e exegético que também o envolve no seu convívio diuturno com as letras: do seu estado, do Nordeste e do país.
Aos textos de caráter mais objetivo, voltados para a leitura e análise de autores e obras, de grupos, movimentos e instituições, juntam-se peças de natureza mais íntima, a exemplo de “A terra onde nasci” e “Solidão na infância”, descortinando aspectos subjetivos, traços psicológicos, incidências geográficas, atitudes intelectivas, recortes da sensibilidade que formam o substrato espiritual e ético de um autor, ao mesmo tempo em que auxiliam o leitor na compreensão de sua personalidade literária e nas disposições temáticas e formais de sua obra poética e ensaística.
As entrevistas, enquanto aquele “diálogo possível”, na feliz expressão de Cremilda Medina, traz o Dimas Macedo quase que de corpo inteiro, noticiando os meandros multifários de suas leituras, os percursos intrínsecos de seus processos expressivos, sua concepção estética, política, existencial e, sobretudo, a posição do homem, do homem que se nutre da seiva luminosa da palavra, diante das coisas, dos seres e da vida.
Se pinçarmos os artigos que concernem à configuração de seus pares, temos, em certo sentido, e enviesadamente, um portal de acesso a nomes e obras relevantes que integram o acervo da literatura feita no Ceará, na sua rica e incontestável tradição histórica e cultural. Jáder de Carvalho, Clauder Arcanjo, Padre Antônio Tomas, Nilto Maciel, Joca do Arrojado, Sânzio de Azevedo e Cristina Couto são alguns dos nomes que constam desse livre mapeamento crítico, a alargar o olhar do leitor pela extensiva e diversificada produção literária deste país.
Seja falando dos outros, seja falando de si, mais uma vez o escritor, poeta e jurista Dimas Macedo se revela senhor de sua composição verbal, indispensável como documento de suas preocupações intelectuais, mas também como exemplo vívido de uma escrita fluente em seu estilo individual, marcada pela presença do leitor culto, ilustrado, perceptivo, e pelos sinais concretos da linguagem elegante e bem cuidada.
Daniel Mazza, por sua vez, de uma geração mais nova, tem, em Sacrifium, o seu quarto livro de poemas. Antes vieram a lume Fim de tarde (2004), A cruz e a forca (2007) e A sinfonia do tempo: primeiro livro de filosofia (2014), compondo, assim, o seu patrimônio poético singular. Em que pese a distribuição dos poemas em conjuntos autônomos (“O túmulo vazio”, “O calvário”, “O deserto” e “Sacrficium”), vejo os textos como um poema só, cerrado e coeso na sua expressão formal e temática de índole sobretudo reflexiva, no que Daniel se põe em perfeita sintonia com os critérios escolhidos por sua poética individual, exercitada desde os livros anteriores.
Sacrificium associa o impulso lírico a uma intrínseca e intensa dramaticidade, enredada a partir de uma releitura, cuidada e criativa, dos episódios bíblicos, aqui e ali, cotejados com elementos próprios do paganismo laico, de que resulta, quase sempre, sugestiva tensão estética a reger o movimento das ideias e das emoções que constituem o tecido substantivo da matéria poética.
As epígrafes de Nicolai Berdiaeff e Tomás de Aquino (foto) podem, desde já, sinalizar para o conteúdo religioso do assunto e do drama que se desenrola neste poema. Mas não se iluda o leitor: a religiosidade, aqui, de fundo eminentemente cristão, não se estreita nos limites de um púlpito doutrinário nem na cadência fechada de uma liturgia dogmática. A pungente e iluminada meditação que se elabora, à força iterativa dos versos, com suas repetições, paralelismos e metáforas impactantes, se é de ordem religiosa, ou, mais precisamente mística, é, ainda mais, de ordem metafísica, na medida em que os signos bíblicos evocados como que transcendem seu estatuto primeiro, para alcançar a energia atemporal dos temas permanentes.
Esses temas permanentes residem no tempo, na eternidade, na morte, no sofrimento, na paixão, enfim, no calvário e no sacrifício de ser e existir. No segundo soneto, de “Tumulo vazio”, por exemplo, é a vida que se pensa poeticamente, para além dos acentos denotativos das referências sagradas. Leia-se o poema: “A chama morrediça, consumindo ∕ Vai a lenha dessa vida, e consumindo-se ∕ No mesmo instante vai em que o instante ∕ Se evola e deixa apenas um montículo ∕ De cinzas em silêncio: o resultado ∕ Da combustão da vida. Eis a única ∕ Resposta que este mundo pode dar: ∕ O silêncio de cinzas em silêncio. ∕ Porque é isto simplesmente a vida aqui: ∕ Um punhado de cinzas, o presente ∕ Que o sopro do futuro a cada instante ∕ Dispersa no passado… A vida aqui, ∕ Um sonho a cada instante, que não temos. ∕ E o que temos, só um sonho a cada instante”.
Não diria ser a poesia de Daniel Mazza uma poesia simplesmente religiosa, cristã ou católica. Os adjetivos a limitam e, em certo sentido, a conspurcam. Sua poesia me parece simplesmente poesia, sem atributos nem epítetos “esclarecedores”. Poesia enquanto sondagem e experiência do que vive e perdura na alma do ser humano, vertida, por assim dizer, numa linguagem de alta voltagem estética. Sagrada, não pela substância, mas pelo visceral acordo entre substância e forma.
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OPINIÃO - 22/11/2024