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Jornalista paraibano, sertanejo que migrou para a capital em 1975. Começou a carreira  no final da década de 70 escrevendo no Jornal O Norte, depois O Momento e Correio da Paraíba. Trabalha da redação de comunicação do TJPB e mantém uma coluna aos domingos no jornal A União. Vive cercado de livros, filmes e discos. É casado com a chef Francis Córdula e pai de Vítor. E-mail: [email protected]

Às vezes nem isso

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publicado em 03/01/2023 às 08h10
atualizado em 03/01/2023 às 05h54

Às vezes sou Adriano de Marguerite Yourcenar, um rosto, um corpo.

Às vezes estou no supermercado comprando pão e uvas sem sementes. Às vezes o couro e o osso, a perceber que não somos para sempre, “vendo-me a mim mesmo para sempre”.

Às vezes a idade se confunde com a cidade, quando escuto pessoas que só falam de coisas antigas e sabem o nome de todas as ruas e eu não posso pensar que elas estão perdidas.

Às vezes choro sozinho, a imaginar um carinho. Como se ainda tivesse medo da vida pra levar.

Vejo-me no quarto, uma bolha, entro e saio e às vezes estou morto, sem nenhum fôlego.

O contemplar do sexo, a força viril, mesmo que depois do amor é só chorar. Passo a mão na outra mão, no rosto, e estou a sonhar com a esperança.

Às vezes sou Charles Bukowski  (foto) levando o gato para o veterinário, que não cobra a consulta, mas são caros os remédios. Não posso deixar o animal morrer à mingua.

Às vezes recito poemas dentro de casa, ora Bandeira, ora as flores do mal de Baudelaire. Os poemas formam um diálogo comigo e algo me empurra para as catedrais, mas meu coração é um músculo – ele não aguenta mais.

Me vejo a conduzir o olhar para o eterno que não existe, mas resiste, como quem ama e é amado.

Às vezes é ano novo, com coisas velhas no entorno. Às vezes sou a estrada e nela Giulietta Masina, minha sina, a puta de outra esquina.

Às vezes está quente lá fora, mas frio demais por dentro. Às vezes tenho saudade, mas questiono: quem inventou essa palavra saudade e se não tivessem inventado, a gente não sentia?

Às vezes volto atrás, peço desculpa e em seguida, perdão.

Já não sei mais esquecer. Diante do computador não tenho o tema e começo a falar de mim, que é o que menos importa. Às vezes o tempo bate na porta, não é o carteiro, não é o ladrão, é só o tempo que não espera por mim.

Às vezes sou “As primaveras” de Casimiro de Abreu, nunca Tristão de Isolda.

Às vezes sou Bertolt Brecht: “escapei aos tubarões, abati os tigres, mas fui devorado pelos percevejos”

Às vezes nem isso.

Kapetadas

1 – Peraí, carisma não se quantifica: ou se tem ou não se tem.

2 – Certos dias são indesculpáveis.

3 – Som na caixa: “Às vezes no silêncio da noite, eu fico imaginando nós dois”, Peninha

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB