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Clara Velloso Borges é escritora, professora de literatura e mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]  

Barulho na vizinhança (de novo)

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publicado em 06/01/2023 ás 07h00
atualizado em 05/01/2023 ás 19h20

Só é ruim ter vizinho músico quando o músico é ruim. Nada pior do que ser coagido a ouvir alguém que ainda está aprendendo os primeiros acordes, cujos dedos ainda não seguram as cordas direito ou não têm firmeza sobre um teclado.

Na mitologia grega, Lino, filho de Apolo, inventou a harpa. Hércules ficou fascinado pelo instrumento, mas não conseguia aprendê-lo de jeito algum. Com seus dedos grossos e fortes, arrebentava as cordas. Se tivesse vizinhos, teriam sofrido com o barulho, corda a corda. Lino insistia, tente de outro modo. Um dia, vendo o pupilo fracassar novamente no dedilho, Lino praguejou e partiu para cima de Hércules. Tolinho. Hércules (foto) esmagou Lino com a lira.

Felizmente, ao meu redor, não mora o desafinado Hércules. Nos últimos dias, um vizinho trompetista tem se revelado, com um repertório eclético e impecável. Na verdade, é quase um desperdício ter como trilha sonora do mais banal jantar um músico da mais alta estirpe.

Não faço ideia de quem seja o músico. Ou a musicista. Talvez o policial educado que mora alguns andares acima relaxe tocando após efetuar algumas detenções. Talvez a aposentada de baixo esteja redescobrindo um dom adormecido. Talvez a adolescente pianista ao lado tenha facilidade com outros instrumentos.

Em prédio, talvez seja melhor ficar no anonimato. Algum amargurado pode preferir a neutralidade do silêncio a ser afetado pela beleza da melodia, fantasiando esmagar tal vizinho com seu trompete. Para mim, é um bálsamo ouvir o talento nas adjacências de casa.

Hemingway só disse que Paris era uma festa em movimento porque não ouviu a melodia da minha varanda em uma terça à noite qualquer.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB