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Kubitschek Pinheiro MaisPB
O resgate da poetisa, da poesia em si de Adalgisa Nery, após 50 anos fora de catálogo, já está em todas as livrarias do país – “Do fim ao princípio: poesia completa – Adalgisa Nery” editora José Olympio. Um trabalho minucioso do jornalista e escritor carioca, Ramon Nunes Mello – um livro completo, valioso e emocionante.
A obra “Do fim ao princípio: poesia completa – Adalgisa Nery”, já foi lançada no Rio de Janeiro numa conversa com Nunes Mello, com mediação de Rita Isadora Pessoa, e a leitura de poemas com Nathalie Nery (neta de Adalgisa), Natasha Corbelino, Jordana Korich e Stephanie Borges.
Livrão de 558 páginas traz à tona a obra poética de uma das maiores escritoras brasileiras, exaltada por Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Jorge Amado, Jorge de Lima e Gilberto Freyre. É a voz feminina em todos os poemas.
O trabalho e pesquisa de Ramon Nunes Mello, que lhe rendeu a tese de mestrado, estabelece o texto definitivo da autora, de quem a Editora José Olympio publicou os romances “A imaginária e Neblina”. Adalgisa transita nos versos do amor, da paixão, perdas e danos, do abandono, da morte e do desejo.
A escritora teve uma vida veloz entre os grandes acontecimentos brasileiros e mundiais. Foi casada com o pintor modernista Ismael Nery e, depois de viúva, com Lourival Fontes, que era diretor-geral do Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas e se tornou embaixador. Foi uma das primeiras mulheres eleitas deputada estadual no país e acabou cassada pela ditadura militar.
Em 36 anos de carreira, publicou sete livros de poemas, dois romances, uma coletânea de contos, outra de crônicas e quatro traduções. A extensa atividade literária iguala-se somente à vida pública, como jornalista combativa e política dona de seu nariz.
Foi eleita deputada em 1960, pela legenda do Partido Socialista Brasileiro (PSB), mas, devido ao golpe militar, sua coluna no jornal é censurada e seus direitos políticos cassados.
Adalgisa na parede
Adalgisa Nery teve seu retrato pintado por Cândido Portinari, Rivera e Ismael Nery. Era poeta, romancista, contista e jornalista. Desde a infância, Adalgisa demonstrava forte sensibilidade poética associada a episódios marcantes de sua vida, como a perda da mãe, aos oito anos. Em 1922, casa-se com o pintor Ismael Nery (1900-1934) e toma contato com a vida intelectual brasileira. Entre 1927 e 1929, Adalgisa e Nery vivem na Europa e conhecem artistas de vanguarda internacional. Torna-se viúva em 1934 e começa a trabalhar no Conselho de Comércio Exterior do Itamaraty. Incentivada por amigos como o poeta Murilo Mendes (1901-1975), publica sua primeira obra, Poemas, em 1937.
O MaisPB conversou com o autor e organizador da obra e traz revelações surpreendentes dessas descobertas, sobre Adalgisa Maria Feliciana Noel Cancela Ferreira – Adalgisa Nery
MaisPB – Esse livro é um resgate, um estado de poesia, uma necessidade literária. Vamos começar por aqui?
RNM – Sem dúvida, um resgate da obra poética de Adalgisa Nery que foi, até então, relegada ao ostracismo por seus pares. Há 50 anos sua poesia estava fora de catálogo, longe dos leitores. Uma necessidade literária no sentido de repensarmos o que é definido como cânone em paralelo ao que é deixado ao esquecimento. Muitas vezes, um cânone que é representado por homens, em sua maioria, brancos.
MaisPB – São 7 livros de poesia, num livro só, agora a poesia completa que você organizou e chega aos leitores. Quando e como aconteceu toda essa descoberta?
RNM – Em 2010, deparei-me com a história de Adalgisa ao ler o livro de Ana Arruda Callado, “Adalgisa Nery: muito amada e muito só”, por sugestão do escritor Bernardo Carneiro Horta. Além de sua biografia. Na ocasião, resolvi escrever um texto para publicar no extinto caderno de literatura, Prosa & Verso (O Globo, 19.06.2010) sobre Adalgisa Nery e sua trajetória literária. “Do fim ao princípio – poesia completa – Adalgisa Nery” reúne os livros “Erosão” (1973), “Mundos oscilantes” (1962), “As fronteiras da quarta dimensão” (1951), “Cantos de angústia” (1948), “Mar do deserto” (1943), “A mulher ausente” (1940) e “Poemas” (1937). Além dos poemas, há um caderno de fotos (muitas inéditas), fortuna crítica, biografia, cronologia e índice de primeiros versos. E a orelha é assinada pela poeta Bruna Beber. A publicação foi realizada pela José Olympio, editora que publicou todos os livros de Adalgisa Nery, desde sua estreia em 1937, o que me deixa muito contente.
MaisPB – Os poemas em grande parte falam do amor e da dor, da vida de uma mulher que teve realizações e vastas solidões…
RNM – Adalgisa cantou o amor e a solidão, num tom grandiloquente e melancólico. E também se aproximou, desde o primeiro livro, da relação com o amor divino. Compreendo a obra de Adalgisa Nery como um longo canto de angústia. A poesia lírica de Adalgisa Nery está na tensão entre a comunhão e a solidão, entre o sagrado e o profano. Acredito que trazer os poemas de Adalgisa hoje pode ampliar a nossa percepção da vida, sobretudo do amor.
MaisPB – Você diz que foi na fonte e nos arquivos relacionados – de Drummond, Clarice Lispector, Pedro Nava e Manuel Bandeira – Fala aí pra gente sobre essa contribuição?
RNM – O acervo de Adalgisa Nery encontra-se, em grande parte, no Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde pesquisei na época que iniciei o mestrado sobre a obra dela na UFRJ, com orientação de Eucanaã Ferraz. Não sei como está a situação da Casa Rui e do Arquivo Museu após o desgoverno fascista que vivenciamos no Brasil. Mas na ocasião era possível acessar o material dos escritores e compreender que muitos contemporâneos de Adalgisa, como Pedro Nava, Bandeira, Drummond, Murilo Mendes, fizeram importante leitura de sua produção literária. Na hemeroteca da Biblioteca Nacional também consultei um vasto acervo de jornal que permitiu compreender a atuação literária, jornalística e política de Adalgisa Nery.
MaisPB – É possível que com o casamento dela com o pintor Ismael Nery, poeta, pintor, Adalgisa tenha dado um salto para ela tivesse espaço para mostrar sua arte?
RNM – O matrimônio com o artista Ismael Nery é marcante na vida e na obra de Adalgisa, sobretudo em sua formação artística com as viagens fora do país e aproximação com artistas e intelectuais dos anos 20 e 30. Entretanto, Adalgisa só publicou sua obra após a morte de Ismael, em 1937, por incentivo de Drummond, Murilo Mendes e Jorge de Lima. O espaço de Adalgisa no meio literário foi aberto por ela mesma, através também das relações políticas e sociais que mantinha.
MaisPB – Como você conseguiu essas fotos incríveis, ela na casa de Portinari, que chegou a ser o ilustrador do seu livro “Mulher Ausente”?
RNM – As fotos foram encontradas através da generosidade da sua neta, a artista Nathalie Nery, que abriu o álbum de fotos de Adalgisa. E também através de pesquisa no Arquivo Museu de Literatura Brasileira. No caso das fotos do Portinari, através do Projeto Portinari.
MaisPB – Para que o grande público saiba, quem era, na verdade, a poetisa Adalgiso Nery?
RNM – Adalgisa Nery é/foi uma mulher à frente de seu tempo. Ocupou lugares, até então, ocupados somente por homens: na literatura, no jornalismo e na política. Uma mulher fascinante, inteligente e contraditória. Uma poeta (ela não gostaria do termo “poetisa”) que cantou o amor como poucos, que precisa ser redescoberta.
MaisPB – Você não pensa em escrever a biografia dela – claro, que seria um trabalho intenso?
RNM – Não tenho interesse em escrever a biografia dela. Até porque a escritora Ana Arruda Callado já fez um excelente trabalho com “Adalgisa Nery – muito amada e muito só”. Fico satisfeito em reunir a poesia dela de forma completa, trazendo aspectos biográficos, com cadernos de fotos inéditas, por exemplo. O próximo passo com Adalgisa é lançar um livro reunindo os contos dos livros “OG” e “22 menos 1” também pela José Olympio. Mas antes disso vou lançar os poemas selecionados de Rodrigo de Souza Leão, que organizei com Silvana Guimarães e Jorge Lira, pela Demônio Negro, ainda neste ano.
MaisPB – O casamento dela com Lourival Fontes, que era diretor-geral de imprensa do governo Vargas, teria prejudicado sua lida literária?
RNM – Sem dúvida. Ao matrimônio com o temido chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) da ditadura Vargas, declaradamente fascista, credito um dos motivos do “silenciamento” da obra literária Adalgisa Nery no meio intelectual. E também a sua amizade com Flávio Cavalcanti, considerado o dedo duro da ditadura.
MaisPB – Você acredita que o livro “Poesia Completa” pode chegar e atrair os leitores jovens que nunca ouviram falar em Adalgisa Nery?
RNM – Eu desejo que sim. Que novos leitores possam conhecer a beleza da poesia de Adalgisa Nery.
MaisPB – Há um quadro de Portinari (foto) em que ela aparece viva, bem viva e maquiada. Esse quadro está um colecionar?
RNM – Pertence a uma coleção particular, não saberia informar.
OPINIÃO - 22/11/2024