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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Ao meu Amigo Stelo Queiroga

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publicado em 12/02/2023 ás 07h00
atualizado em 11/02/2023 ás 20h18

O meu amigo Stelo Queiroga postou o texto abaixo e me pediu para dizer algo sobre ele:

”A preposição portuguesa até assim como a espanhola hasta, que indica limite de espaço, de tempo, de ação, quantidade ou intensidade deriva do árabe hatta (حتى), até, uma rica expressão que, de acordo com o grande compêndio gramático Mughni al-Labib de Ibn Hisham, escrito no século IX, possuí no Alcorão mais de 40 significados possíveis quando aplicada numa frase. Alguns dicionários etimológicos informam que a palavra portuguesa provém da expressão latina ”ad tenus”. O filólogo Joan Coromines (1980) invalida tal hipótese assinalando que, se o vocabulário tivesse esta origem, teria, com certeza chegado à forma teos, medieval, o que nunca foi abonado. Para fortalecer a argumentação dos que acreditam na origem árabe do termo, existe a forma haté no extinto árabe-hispânico falado tanto em Portugal quanto na Espanha nos tempos dos mouros.”

Meu amigo Stelo, gostaria, inicialmente, de agradecer pela confiança que você deposita no meu conhecimento. Só os amigos são capazes disso. Em seguida, gostaria de, com o mesmo entusiasmo, lhe dizer que meu conhecimento da língua árabe se equipara ao meu saber sobre a vida sexual dos caramujos da Polínésia. Ou seja, nulo. No entanto, posso lhe dizer alguma coisa tomando como base os estudiosos do assunto e os especialistas em etimologia, ciência de uma amplidão e profundidade que poucos imaginam.

À primeira vista, pode-se dizer que a origem da preposição até é controversa. O que já é melhor do que se fosse considerada desconhecida. Por controversa, entendemos que os etimólogos se digladiam na discussão a respeito de onde provém o termo. Há, em meio a esta guerra linguística, ao menos duas possibilidades: uma origem proveniente do latim e outra do árabe.

A origem do latim é óbvia, tendo em vista que a nossa língua portuguesa é filha amada da língua do Lácio, que acabou dominando grande parte do mundo europeu, asiático e africano, de então, sobretudo os países que compõem a bacia do Mediterrâneo. Isto, no entanto, não autoriza ninguém a dizer que a palavra é de origem latina, embora se atrele, habitualmente, a seu étimo a expressão tenus que, em latim, significa até, apesar de  Corominas ter dito que tenus derivaria para teos, não para , tendo o acréscimo do a, a partir de outra preposição latina, ad, que rege acusativo de direção, o que daria até. Mas segundo leio, o termo teos nunca foi abonado, o que significa que não foi encontrado em textos medievais, pelo menos por enquanto.

Há outros estudiosos, como Nunes, na Crestomatia arcaica, que supõe uma forma hipotética *tenes, para tenus, que teria perdido a nasalização com a prótese (acréscimo no início) de ad: adtenes > atenes > atees > até. A forma está devidamente abonada em textos medievais, como mostra o Dicionário etimológico da língua portuguesa, Antenor Nascentes (2ª impressão, 1ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1955, tomo I).

Obviamente, que os argumentos em prol da língua latina, apesar de muitos e chancelados por linguistas renomados, como Mayer Lübke, não excluem o benefício da dúvida a favor de uma origem árabe, tendo em vista a contribuição que esta língua deu à língua portuguesa e à espanhola, nos quase 8 séculos que os mouros passaram na Península Ibérica – de 752 a 1492. O que não se pode fazer, no entanto, é fechar uma questão sobre a origem do termo até, atribuindo-o à língua de Maomé, o que faz a apresentação do texto que o amigo me enviou.

Enfim, lamento não poder dirimir as dúvidas em relação ao termo, mas em língua nada é definitivo, dependendo das descobertas que se fazem de documentos que ainda estariam por vir.

Mais uma vez, agradeço ao amigo a confiança e afirmo estar sempre aberto às discussões sobre o nosso riquíssimo idioma.

Abraço fraterno do amigo,

Milton

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB