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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Visões sobre Augusto

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publicado em 15/02/2023 às 07h00
atualizado em 14/02/2023 às 13h54

Em 19 de julho de 1907, Gilberto Amado escrevia, em sua coluna “Golpes de Vista”, do Diário de Pernambuco, as seguintes palavras, depois transcritas no segundo volume de suas memórias, Minha formação no Recife (1955):

“A maioria {dos jovens} atira-se a fazer versos pelo simples motivo de que no Brasil é costume tradicional dos vinte aos vinte e cinco anos ser poeta. Começa também um movimento de imitação a um rapaz histérico mas de extraordinário talento que vive isolado, misantropo, no interior da Paraíba, Augusto dos Anjos”.

É curioso que, na visão do escritor sergipano, Augusto já apareça como figura catalítica de um movimento poético, uma vez que o Eu só seria publicado em 1912, inclusive em meio ao quase absoluto desconcerto da crítica.

Vê-se, no entanto, que o poeta do engenho Pau d`Arco, apesar do isolamento em que vivia na várzea paraibana, marcava presença nos meios literários através de suas colaborações com os jornais da época, em especial com O Comércio, de Arthur Aquiles. Poeta inédito em livro, tinha, não obstante, ressonâncias estéticas nos ambientes literários da cidade da Paraíba e do Recife, principalmente na Faculdade de Direito desta capital cultural do Nordeste, fermentada pela forte tradição de sua escola filosófica e científica.

Chama-nos a atenção, no trecho citado, a caracterização do poeta Augusto dos Anjos como “histérico” e “misantropo”, embora de “extraordinário talento”.

Quanto ao talento, não se discute. O tempo e o destino da fortuna crítica de sua obra vão confirmar a opinião do memorialista. Quanto ao “histérico” e ao “misantropo”, não se sabe, ao certo, em que se baseou Gilberto Amado para emitir parecer tão taxativo, de certo modo contribuindo para a construção de uma imagem, senão extravagante, pelo menos exagerada, da personalidade do poeta. Até porque, a levarmos em conta as páginas de suas memórias, o autor não chegou a conhecer pessoalmente o bardo paraibano.

Orris Soares, no célebre prefácio que escreveu em 1919 para a edição do Eu, acrescentado de “outras poesias”, em 1920, sem usar termos médicos que sinalizassem para alguma enfermidade psíquica, reforça, ainda, a imagem insólita do poeta, quando assinala: “Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida – faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada”. E, mais à frente, recordando o momento em que iniciou suas relações pessoais com o poeta, ressalta: “Feriu-me de chofre o seu tipo excêntrico de pássaro molhado, todo encolhido nas asas com medo da chuva”.

Há quem diga que esse prefácio caricaturiza a figura física do poeta e serve de apoio a certas leituras de sua poesia, vendo, nela, tão somente uma fotografia verbal das distorções e mazelas que coexistiam doentiamente em sua alma. Ou seja, dito de outra forma, o prefácio, nas suas considerações de ordem biográfica e de ordem estética, apenas põe em prática a equação determinista e linear entre vida e poesia, entre subjetividade e texto poético.

Augusto dos Anjos, na materialidade expressiva de sua lírica, sofreu e ainda sofre dos males causados por aquilo que Umberto Eco chama de mero “uso do texto”, por meio do qual as leituras de suas imagens inventivas e desconcertantes, são nada mais nada menos que simples projeções impressionistas de leitores despreparados para assimilar e compreender a complexidade artística de sua linguagem e de sua visão de mundo. Certas ilações, que se extraem do cotejo direto entre vida e poesia, não condizem, portanto, com as exigências do processo interpretativo, constituindo-se, assim, naquilo que o semiólogo italiano denomina de “superinterpretação”.

O estranho da poética, resultado de uma refinada e renovadora formulação vocabular e vérsica, onde a dissonância rítmica e a originalidade da percepção se equilibram nas simetrias de som e sentido, não pode nem deve ser reduzido à veracidade dos elementos biográficos. O poema, que converte a experiência poética em expressão verbal e artística, é, antes de tudo, fantasia criadora, imaginação imagética, espetáculo da palavra.

Não poderia concluir este artigo sem me referir a Humberto Nóbrega. No seu livro Augusto dos Anjos e sua época (1962), considerado injusta e exageradamente “imprestável” por Otto Maria Carpeaux, reconstitui, decerto, a imagem mais adequada do poeta, trazendo à tona, depois de intensas pesquisas, a figura do homem como um ser normal, professor, pai de família, sociável e inteiramente à vontade na vida cotidiana, inclusive, com pitadas de galanteio e de humor. Além do que, foi o primeiro a provar que Augusto não morreu de tuberculose, como ainda hoje se propaga na voz de alguns incautos, mas, de pneumonia.

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