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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

De Santa Luzia a São José

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publicado em 21/03/2023 ás 13h13

Amanheceu chovendo muito, com direito a relâmpagos e trovoadas. Chuva de sapo pedir canoa. Ao que parece, teremos um bom inverno. Nada sei de meteorologia, mas a súbita mudança de temperatura, a abundância das indefectíveis formigas de asa e, surpresa! o aparecimento de tanajuras, que eu não via há um bom tempo, me deixam com uma certa esperança. O Equinócio de Outono, para mim, foi uma espécie de fiel da balança: muita chuva um dia antes, dia de São José; muita chuva um dia depois, dia 21 de março, que o calendário hagiográfico aponta como sendo dia de São Serapião de Têmuis, de que não tenho qualquer notícia. Talvez meu amigo José Nunes, por sua condição de Diácono possa nos dizer algo.

O importante, contudo, é a chuva. Chuva abundante, pelo menos aqui na capital. No sertão, por causa da convivência com a seca, o sertanejo deve ter feito as suas experiências para saber se haverá ou não chuvas suficientes que garantam um bom inverno e o plantio do milho, no dia 19, de modo que, três meses depois, no São João, não faltem a canjica, a pamonha, o bolo de milho, o milho assado, o milho cozido e, sobretudo, nunca falte o cuscuz.

Em Os sertões (usamos a edição crítica de Walnice Nogueira Galvão, São Paulo, Ubu Editora/Edições Sesc São Paulo, 2ª. edição, 2019), Euclides da Cunha se refere à experiência das pedrinhas de sal ao relento, que os sertanejos fazem na véspera de Santa Luzia, 12 de dezembro, como maneira de prever seca ou chuva, tendo que esperar, contudo, até o dia de São José, três meses depois, para a confirmação:

É a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 [de dezembro] ao anoitecer [o sertanejo] expõe ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer do dia 13 observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o inverno benfazejo.

Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso tem base positiva, e é aceitável desde que se considere que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d’água nos ares, e, dedutivamente, maiores ou menores probabilidades de depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.

Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima, ante os seus piores vaticínios. Aguarda, paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no dia de São José, 19 de março, procura novo augúrio, o último.

Aquele dia é para ele o índice dos meses subsequentes. Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno; se, ao contrário, o Sol atravessa abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças.

A seca é inevitável” (Segunda Parte, “O Homem”, Capítulo III, p. 131-2,itálico nosso).

Gostaríamos apenas de fazer um pequeno reparo. Sabemos que no hemisfério sul, onde vivemos, o dia 20 de março, seguinte ao dia de São José, a que se refere o escritor, é regularmente o dia do Equinócio de Outono, podendo, eventualmente, ocorrer no dia 21. Para quem vive no hemisfério norte, o que não é o nosso caso, este dia corresponde ao Equinócio de Primavera. Houve, claro, uma confusão de Euclides da Cunha, trocando a denominação dos equinócios, e, para desfazê-la, o texto mereceria uma nota dos comentadores ou dos editores críticos de Os sertões, o que não ocorre.

Deslize à parte, o importante é ressaltar o registro da experiência, feito por Euclides da Cunha, que, acreditamos, continua a ser feito, apesar de toda a tecnologia existente hoje em dia. Muitas vezes, a experiência vivida e sentida na pele, se antecipa à parafernália tecnológica, que confunde o homem simples, porém conhecedor da natureza que o circunda. Homem com a visão aguçada por Santa Luzia e garantida pelas novenas ao santo padroeiro das chuvas.

Que venham as chuvas equinociais.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB