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Magistrado, colaborador do Diário de Pernambuco, leitor semiótico, vivendo num mundo de discos, livros e livre pensar. E-mail: [email protected]

Vozes do além

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publicado em 23/03/2023 às 06h56

Os antigos já diziam que cemitério não precisava de muros, pois quem está dentro não pode sair e quem está fora não quer entrar. Natália ficava intrigada com isso sempre que passava defronte ao campo santo. Certa feita leu num ossário a seguinte inscrição: “Os nossos estão esperando pelos vossos”. Tremeu na base. Afinal, ali estavam os despojos de toda uma vida; crânios, fêmures, tíbias, dentes agora sem aquele branco ostensivo das lentes de porcelana nas bocas, tanto de famosos quanto de anônimos. Mas Natália gostava da paz que emanava daquele lugar. Quedava-se paralisada por longo tempo, o rosto espremido entre as grades do cemitério, fitando a perpetuidade daqueles jazigos.

Havia morado em três bairros da capital e em cada um deles tinha um cemitério, e por coincidência ficava sempre no caminho da escola onde estudava. Olhava para as pessoas e elas pareciam indiferentes à morada dos mortos; caminhavam, riam, conversavam e pouca ou nenhuma atenção davam àquele lugar. Era a quietude dos que já se foram com o frenesi dos que ainda por aqui estavam. Pensava no dia de sua morte. O que seria morrer? Apagar e ter toda a sua memória (alma?) extinta, como em um agadê de computador? E os espíritos, almas penadas, fantasmas, essas histórias  do além? Não acreditava nessas coisas. O que sentia ali era a anestesia da normalidade. Gostava do verso de um  poeta cujo nome esquecera, que vaticinava que “morrer é voltar para casa”. E era para onde Natália sempre voltava, após sair da escola e passar pelo cemitério. Afinal, estava viva e morava em uma casa com sua família.

Numa tarde de calmaria, após retornar da aula, Natália sentou-se na calçada do cemitério para, com a paz dos mortos, pensar na vida. O chão estava forrado com uma espécie de tapete vermelho, formado por centenas de bolinhas encarnadas do tamanho de um caroço de feijão, que caiam das muitas árvores plantadas por entre as vielas.  Também os pés de manga já na safra, deixavam cair seus frutos, dentro e fora do muro. Natália cerrou os olhos e então escutou vozes do lado interno do cemitério: “Essa é minha, essa é tua, essa é minha, essa é tua…” No enlevo ritmado dessa contagem, Natália morgou-se e quase adormeceu, quando espevitada levantou-se ao ouvir uma das vozes sentenciar: “Essa é minha, essa é tua, e aquela que está lá fora é de quem pegar primeiro”.

Saiu em desabalada carreira e quando estava na quadra seguinte, tomada do pouco de coragem que lhe restara, olhou para trás e pode ver um homem se abaixando para apanhar uma manga madura que caíra na calçada onde Natália estivera sentada.

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