João Pessoa, 04 de abril de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Compartilho com você, leitor(a), mais um caso concreto testemunhado no dia a dia da minha clínica psicológica lidando com pessoas em sofrimento mental, mais especificamente usuários e dependentes químicos e seus familiares.
Trata-se do caso de uma jovem, recém saída da adolescência, usuária de vários tipos de drogas, levada à clínica pelo pai. La estava, não por vontade ou iniciativa própria, mas obrigada pela família, como é comum acontecer na maioria das vezes, especialmente quando se trata de jovens, usuário(a)s ou dependentes de drogas, como é este caso.
Mesmo sem vontade de estar ali não se furtou a narrar a sua história em relação ao consumo de drogas. Narrou que fazia uso de tais substâncias deste os 14 anos de idade, iniciando pelo tabaco, por influência de amigos, e com o passar dos anos enveredou por outras como: “maconha”, álcool, cocaína, “êxtase” (metanfetamina) e, por último, “crack” (cocaína em forma de pedras). Nessa primeira visita à clínica a cliente estava com 18 anos de idade, e aproximadamente quatro anos de consumo de drogas.
Acrescento, confirmado por vários estudos sobre o tema, que as pessoas que iniciam o uso indevido de drogas antes dos 15 anos idade têm a probabilidade de três a cinco vezes maior de se tornarem dependentes destas substâncias, do que aquelas que só começaram após os 21 anos.
Nas sessões psicológicas que promovi com a aludida jovem, que vou chamar de “Nina” (nome fictício), ela se mostrou receptiva a falar sobre a sua relação com as drogas, mas, ao mesmo tempo, pouco disposta a abandonar tal comportamento de uso indevido e prejudicial.
Confesso que geralmente nas primeiras sessões psicológicas com clientes drogadictos (usuários ou dependentes de drogas), tenho como prática, priorizar estratégias que ajudem no restabelecimento das relações familiares, escolares, sociais etc., pois é comum que já estejam bastante comprometidas. E neste caso não foi diferente. Faço isto, porque a experiência clínica me ensinou que quando conseguimos restabelecer a harmonia familiar, mesmo que o(a) usuário(a) não esteja disposto(a) a interromper o consumo da droga, tal feito facilita a relação do cliente com o profissional e minimiza os riscos de abandono do tratamento.
“Nina” demonstrou concordância e permaneceu alguns meses no tratamento, apesar das irregularidades no comparecimento às sessões e da resistência em cumprir os acordos firmados com este profissional, especialmente aqueles relacionados ao “desmame” das drogas. O relacionamento familiar melhorou significativamente. Já em relação ao consumo de drogas, as recaídas continuaram a acontecer com muita frequência, e finalmente resolveu, segundo ela, “dar um tempo nas sessões psicológicas”. Fato relativamente comum no tratamento de pessoas com dependência química. Contudo, devo dizer que cerca de 80% dos dependentes químicos que conseguem abandonar o consumo de drogas, passam por pelo menos três a cinco recaídas.
Passados alguns anos recebi uma ligação telefônica do pai de “Nina”, solicitando agendamento na clínica para ele e a filha. Imaginei que o problema havia se agravado e agendei o mais breve possível. Ao recebê-los na clínica estranhei a forma descontraída que ambos estavam. Me abraçaram calorosamente, e “Nina” de imediato passou a falar sobre sua vida nos últimos anos, sob o olhar atento e feliz do seu pai.
Eis um resumo da sua narrativa: “Usei drogas durante quase dez anos. Em muitas ocasiões, após consumir multidrogas, cheguei a desmaiar, ter convulsões e sensações de quase morte, mas tudo isso não me fez parar com tal comportamento abusivo. Certo dia, após uma das tantas farras, cheguei em casa ao nascer do sol, ocasião que meu pai estava saindo para sua costumeira caminhada matinal. Ele me cumprimentou com um beijo, me abraçou, e me fez um convite para caminhar com ele em volta da praça pública que fica em frente a nossa casa. Mesmo estando muito cansada aceitei o convite, pois o peso na minha consciência era maior que o cansaço. Ele colocou o braço do meu ombro e eu na sua cintura e passamos a caminhar a passos lentos. Caía uma neblina fina, mas continuamos nossa marcha; meu pai não reclamou comigo, e a todo tempo nos mantivemos abraçados. Senti o quanto meu pai estava abatido. Com minha cabeça escorada no seu peito dava pra ouvir sua respiração ofegante. Lembrei que apesar de todo o sofrimento que eu fiz minha família passar, ela não desistiu de mim. Naquele instante chorei copiosamente, mas em silêncio, não queria que meu sofrido pai percebesse. As gotas da chuva ajudaram a esconder minhas lágrimas. Meu pai me abraçava cada vez mais forte, não sei se para se apoiar, haja vista a sua fragilidade, ou se para me consolar ao notar o meu choro. Encerramos nossa caminhada ainda abraçados. O sol estava lindo! De repente fui invadida por um sentimento de paz muito intenso e inexplicável. Abracei minha mãe e senti o cheiro inconfundível dela, algo que eu há anos não sentia, pois raramente a abraçava. E, como num passe de mágica, minha vida e a da minha família se transformaram e voltamos a ser realmente felizes novamente. Estou sóbria há cinco anos e convicta que jamais usarei drogas novamente”.
Acrescento que a reunião acima descrita aconteceu há cerca de quatro anos, e que “Nina” atualmente é casada, mãe de uma linda filha, e segundo me afirmou seu pai recentemente, continua sóbria.
Assim, compartilho com você a minha dúvida: foi amor ao pai, ou milagre do Criador?
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OPINIÃO - 22/11/2024