João Pessoa, 12 de abril de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Diz Clara Veloso Borges, em artigo para o MaisPB, que somos o que lemos. Assino embaixo. Sermos o que lemos é sermos tantos! Impossível, portanto, traçarmos os limites de nossa individualidade.
Comecei cedo, muito cedo, lendo e trocando gibis na porta dos cinemas de Campina Grande. Lia de um tudo. Pimentinha, Mandrake (foto), Durango Kid, Tarzan, Fantasma, Homem Aranha, Cavaleiro Negro, Zorro, Batman, Super-Homem e Jerônimo, entre tantos heróis do universo dos quadrinhos.
Já mais maduro, adentrei o mundo do faroeste, da ficção científica e do policial em pequenas e bem configuradas edições de bolso. Dos manuais de leitura e das antologias escolares, já entre o ginasial e o clássico, fui me deparando com as peças antológicas de autores da língua portuguesa. Alexandre Herculano, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Machado de Assis, Raul Pompeia, Camilo Pessanha, Lima Barreto, Castro Alves, Olavo Bilac, Cruz e Souza e tantos e tantos sinalizavam para a possibilidade de um mundo diferente, no qual a beleza da “última flor do Lácio” se conjugava com os ditames das experiências emocionais vividas na prosa e no verso.
Já era o tempo e já era a história da literatura consignando os percalços do futuro leitor, sempre seduzido pela verdade das revelações estéticas e pelo mistério da palavra que se fazia forma, imagem e música. As páginas literárias como que nos ensinam a clarividência das coisas ao mesmo tempo em que nos educam para melhor suportar a contingência da realidade humana e a “insuficiência estrutural” que preside a nossa desamparada condição.
Sim: somos o que lemos!
Que há em mim de Augusto dos Anjos, descoberta a estranha orografia de seu lirismo agônico e dilacerado? Não sou dos que apreciam a compleição grotesca do seu estro poético. Prefiro o Augusto que consegue ver Elias subindo aos céus num carro de glórias, aquele que tem, no coração, catedrais imensas e o que “ficou sozinho ∕ cantando à beira do caminho ∕ a poesia de tudo quanto é morto”.
Que verdades me imprimiu um Dostoiévski na esfera de suas inquietações metafísicas, no âmbito desarvorado de seus personagens paradoxais, devorados pela agonia moral e pelo demonismo político, visionário e niilista? Dostoiévski me parece uma paidéia, e já o imaginei, num poema, como o meu planeta de sabedoria.
Se somos o que lemos, algo dele me marcou para sempre.
Penso, aqui, também, no que tenho de Fernando Pessoa, desdobrado ele mesmo em seus múltiplos heterônimos. Sinto que muito de seus conflitos imaginários, tecidos ao calor do verso perfeito, calaram fundo em minha alma, dando-me, assim, a noção do ático rigor que vem de um Ricardo Reis; o individualismo desesperado de Álvaro de Campos, a sapiência natural de Alberto Caeiro e toda melancolia que perpassa as orações de Bernardo Soares. Dele próprio, Pessoa, percute, na memória, a pertinência dolorosa destes versos inimitáveis: “Ó, mar salgado, quanto de teu sal ∕ São lágrimas de Portugal!”.
Nunca separo Pessoa de Mário de Sá-Carneiro. Não pelas circunstâncias históricas ou pelo vínculo afetivo da amizade. A bem dizer, seus versos reverberam a mesma paisagem de dentro da subjetividade e oscilam em meio à ambivalência do tédio e ao sabor inexplicável do absurdo de existir. “Eu não sou eu nem sou o outro. ∕ Sou qualquer coisa de intermédio. ∕ Pilar da ponte do tédio ∕ que vai de mim para o outro”. Estes versos de Mário me fizeram em algum plano da sensibilidade e da imaginação, sobretudo quando o foco da vida se resume ao milagre da poesia.
Também sou Mário, agora o de Andrade, que me ofertou estes versos: “Sou trezentos, sou trezentos e cinquenta, ∕mas um dia desses toparei comigo”. Que melhor modelo se prestaria para sondarmos esta questão de ordem especulativa? Decerto a pluralidade das fontes de formação, das componentes genéticas, cósmicas, biológicas, físicas, psíquicas e culturais se fundirão na plenitude de uma individualidade.
Por isto somos o que lemos!
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OPINIÃO - 22/11/2024