João Pessoa, 19 de abril de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Wilson Martins, no primeiro volume de seus Pontos de vista, em artigo acerca do romance histórico, afirma, a seu modo irônico e taxativo, que este é “um gênero bastardo e contraditório”. Gênero, por assim dizer, de “natureza dúbia”, anfíbia, falaciosa, no qual, e quase sempre, colidem as verdades factuais com as verdades verossímeis. Dito de outra forma, o que é real nem sempre se converte em configuração estética, e o que é configuração estética, não raro, sucumbe aos imperativos do real.
Para subsidiar seu pensamento, o crítico paranaense recorre a um de seus mestres franceses, Brunetière, citando-o, nestes termos: “O que é um romance histórico? Alguma coisa que não será nem romance nem história, ou, antes, que será história quando procurarmos o romance, e que se transformará em romance quando procurarmos a história”.
Um e outro, portanto, parecem não acreditar no potencial literário e artístico do gênero, embora se saiba da existência de obras deste jaez, em que o equilíbrio criativo entre o dado histórico e o apelo estético se consuma de acordo com os mais rígidos princípios da ordem literária, inclusive, adensando a matéria histórica e elastecendo o horizonte de expectativa do leitor. Um romance, como Guerra e paz, de Tolstói, centrado nos episódios históricos das guerras napoleônicas, não deixa de ser um exemplo que foge à determinação da regra. Assim como, entre tantos, A guerra do fim do mundo, de Mário Vargas Llosa; O tempo e o vento, de Érico Veríssimo; Getúilo, de Juremir Machado da Silva, e Agosto, de Rubem Fonseca.
Sei dos riscos que o ficcionista corre ao se debruçar sobre personagens ou acontecimentos históricos. É possível, sim, que a pressão dos fatos e a força da realidade venham comprometer a liberdade de criação que, se pressupõe, deva constituir o epicentro dos movimentos imaginativos que conduzem o escritor na reconstrução de ambientes, episódios e criaturas, presentes na estrutura romanesca. Não discuto a lógica de cada paradigma. O romance é obra de ficção; a história é obra científica. Aquele tem, como elemento singular, a verossimilhança, ou seja, o que é viável nos parâmetros da coesão e coerência artísticas em âmbito narrativo; esta, a veracidade factual. Investigada, testada, interpretada e comprovada a partir de métodos racionais e de pressupostos científicos. Como encontrar, assim, a simetria ideal entre postulados tão diferentes?
Não tenho outra resposta que não seja o talento do autor. Sua capacidade de elocução, sem a qual não se faz literatura, associada, sobretudo em se tratando do romance histórico, à capacidade de pesquisa, ao senso de observação, à intuição exegética e, especialmente, ao timbre e ao tom especiais da narrativa romanesca. Desde já alerto: não confundir romance histórico com história romanceada!
É o mais novo romance do sertanejo de Pombal (PB), Tarcísio Pereira, A farra do meu cadáver (Guaratinguetá, SP: Penalux, 2023), que me leva a fazer tais reflexões, ciente de que este seu mais recente intento, no terreno da ficção, pode ilustrar muito bem o difícil e raro encontro da literatura com a história, uma vez que, nas suas páginas e capítulos, a liberdade de uma não adultera nem escamoteia os limites da outra, assim como a outra (a história) não estreita nem corta a fantasia criadora de uma (a literatura).
O romance narra o insólito périplo de João Pessoa, já morto, durante 14 dias, por diversas capitais do país até chegar ao Rio de Janeiro, onde será sepultado. A voz do discurso narrativo, em primeira pessoa, é a do próprio morto, à semelhança de Brás Cubas, nas suas “Memórias” e do narrador de Agonia na tumba, seu primeiro romance, de 1993. Morto e dentro de um caixão. O ponto de vista está colado, por conseguinte, ao olhar deste personagem central, corporificando, assim, a “visão com” de que fala Jean Pouillon, em O tempo no romance, conquanto outras vozes e outros olhares apareçam, deslocando e flexibilizando o sinuoso movimento da narrativa. É o caso, por exemplo, de João Dantas, espécie de coprotagonista, que, nos constantes e recorrentes diálogos com João Pessoa, traz à tona sua versão dos fatos e os motivos do crime. O pano de fundo reside nos dias tumultuosos que precedem a Revolução de 30, e as personagens e as componentes históricas comparecem através, não somente dos diálogos travados entre vítima e assassino, mas também por intermédio das vozes dos outros personagens, reais e ficcionais, secundários e figurantes.
Se o contexto histórico se entremostra, em seus conflitos e contradições, documentado pelo esforço de uma pesquisa minuciosa e, no entanto, aberta, a situação dos personagens, em particular, dos dois João, materializa o andamento dramático da fabulação. Produtos de uma ambiência histórica demarcada pelo traço trágico, ambos se desvelam no plano mais íntimo e humano de sua sensibilidade. O recorte subjetivo dá a tônica da narração, e João Pessoa e João Dantas, num gradual e insistente duelo verbal, expõem suas fragilidades, mesquinharias, ódios e rancores, como se encenassem, entre toscos presságios e fatídicos sinais, a tragédia incontornável de seus respectivos destinos.
Diria que certas incidências míticas, principalmente em torno de João Pessoa, são como que desconstruídas, na medida em que, mais que o personagem histórico revestido com a aura de mártir, líder e herói de uma revolução da qual não participou, projeta-se, no tecido ficcional, a figura do homem, da criatura humana, trespassada pelo sofrimento íntimo, pela vulnerabilidade, desgostos, anseios, expectativas e desamparo. É exatamente aqui que intervém, com sua argúcia analítica e sua livre imaginação, a palavra do romancista, detectando certas zonas obscuras a que nenhum historiador teria acesso, isto é, essa região complexa e convulsa em que se desenvolve a odisseia da condição humana.
A propósito, João Pessoa não seria João Pessoa, sem João Dantas. João Dantas, nada seria, sem João Pessoa. Isto, na história, mas também no romance. O elemento real, na sua dimensão sociológica e política, se converte em virtualidade estética, no plano da expressão literária, exatamente pelo vigor e pela propriedade da construção dialógica. O que é externo se internaliza sob os ditames da prioridade artística. Os diálogos, se não são reais, são verossímeis, e talvez respondam melhor que qualquer outro ingrediente do universo romanesco (tempo, espaço, tema, enredo, trama etc.) pelo viés de sua literariedade.
Gonzaga Rodrigues vê, em A farra do meu cadáver, algo do realismo mágico dos escritores latino-americanos, e W. J. Solha acentua sua marca cinematográfica. Creio que ambos têm razão. Se, por um lado, os capítulos iniciais criam certa atmosfera de ansiedade em torno da viagem de João Pessoa a Recife, como se fora uma espécie de “crônica de uma morte anunciada”, os cortes abruptos, o cotejo das ações externas e internas, a cadência narrativa, as cenas, as sequências, as montagens, por outro, aproximam o romance do teatro e do cinema. Quem sabe, por trás do escritor, não se esconda precisamente o dramaturgo.
Vejo nesta obra, não obstante, algo, talvez, mais surpreendente. Vejo a fusão, decerto somente possível na larga esfera do romance, mesmo em se tratando de um romance histórico. Vejo a mescla da épica, do drama e do lírico. A épica abre espaço para o horizonte histórico, para os embates políticos, para o cenário onde as ações se desenrolam e os atores se digladiam; o drama se irradia a partir da cena fatídica do crime na Confeitaria Glória e, principalmente, na distribuição dos diálogos; o lírico, por sua vez, subsiste na energia emotiva de certas passagens, no clamor ardente de certas construções estilísticas e, em especial, em toda tessitura do último capítulo, “As cinzas”, que funciona como epílogo.
O ano agora é o de 1998, dia 26 de julho. Um salto no tempo. As cinzas do Presidente João Pessoa voltam à capital paraibana para serem colocadas na cripta real do Palácio do Governo. Nem mesmo nesse momento solene de saudosas homenagens, João Pessoa se livra da presença incômoda, fantasmática e imperiosa de João Dantas. Mais um diálogo se costura na recomposição do passado, selando uma estranha dialética que os une, definitivamente, na vida e na história. “E tu, que tiveste a fraqueza de me abater”, diz João Pessoa, “és o principal responsável pela minha glória”. Ao que replica João Dantas: “Que seria você, se não fosse eu?”.
O professor da UFPB, Dinarte Varela Bezerra, em seu livro 1930: a Paraíba e o inconsciente político da revolução, elenca alguns romances focados naqueles acontecimentos históricos. Fala de Fretana, de Carlos Dias Fernandes; Seara de Caim, de Rosalina Coelho Lisboa; A mansão da praça Bela Vista, de Carmen Coelho de Miranda Freire; Tempo de vingança, de Virgínius da Gama e Melo; O chamado da terra, de Fernando Silveira; O dia dos cachorros, de Aldo Lopes de Araújo; Boa terra de ódios, de Paulo Fernando Craveiro; Roliúde, de Homero Fonseca; Concerto para paixão e desatino, de Moacir Japiassu; A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta e História do rei degolado nas caatingas do sertão, de Ariano Suassuna; Zé Américo foi princeso no trono da monarquia e Skake-up, de W. J. Solha.
Em cada um deles, procura deslindar as resoluções e os impasses romanescos diante dos episódios históricos, contribuindo, assim, para uma melhor compreensão dos seus bastidores e das suas repercussões advindas da intuição e da sutileza do olhar literário. Pois, a literatura, se não expressa efetivamente o que a narrativa histórica se propõe, isto é, o que acontece no terreno da realidade, expressa, contudo, como leciona Aristóteles, na Poética, o que poderia ter acontecido ou o que poderia acontecer.
Pois bem. Se o professor Dinarte Varela, um dia, retomar o seu rico e indispensável estudo, uma vez que toda pesquisa é infinita, deverá, sob pena de cometer omissão indesculpável, inserir, na tradição desses romances históricos, o belo, pungente e bem realizado romance de Tarcísio Pereira.
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TURISMO - 19/12/2024