João Pessoa, 03 de maio de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
De essências e medulas se faz a poesia, diz Ezra Pound na consecução de seu paideuma lírico. O minimalismo e seus desdobramentos formais abre largo campo de experiências para aqueles que se digladiam em torno da palavra poética. Diria que há uma febre do menos, não só pela referência credencial de um João Cabral de Melo Neto ou pela pressão das vanguardas (poesia concreta, poema práxis, poema processo, se me atenho aos movimentos mais visíveis), mas também pelo eco oriental do haicai, que, desde o século passado, aqui se aclimatou enquanto procedimento técnico-literário dos mais férteis e sugestivos.
Pode-se mesmo falar de um haicai à brasileira! Se mestres canônicos, como Bashô, Buson e Issa, servem de modelos para aqueles que cultivam a forma nipônica, dentro de seu espírito de síntese e densidade perceptiva, como que formulando uma visão guestáltica das coisas e dos fenômenos, parece ampliar-se, no entanto, o raio do olhar, das ideias, das sensações e do pensamento em contexto diverso, mas nem por isto indiferente à sua “metafísica instantânea” cheia de insights e de efeitos poéticos.
É lendo a nova coletânea de haicais, No compasso da maré (Maceió, 2022), do alagoano Fernando Sérgio Lyra, organizada pelo poeta Sidney Wanderley, que me vêm reflexões como esta. Até porque Fernando Sérgio Lyra, a levarmos em conta seus livros anteriores, parece ter optado por esta forma poética como a forma que se adequa melhor às suas inclinações estéticas e vivenciais no exercício da palavra. Leiam-se, para conferir, Hai-cactos (1991), Planos de gaivota (1996) e Hai-quase (2002), este em parceria com Sidney Wanderley e por mim prefaciado.
A epígrafe, colhida em Victor Hugo (“A palavra, como se sabe, é um ser vivo”), já irradia sinais significativos no que concerne a motivos temáticos e a táticas retóricas. Lá, a variedade de tópicas, embora a presença dominante de ingredientes naturais, tão ao sabor dos paradigmas de origem, naquilo que eles contêm de essencial e medular, de revelação e espanto. Aqui, o manejo substantivo do vocábulo, a palavra-coisa, quase tátil, no ato de desvelar ou conceituar os acidentes da natureza.
Para o primeiro caso, veja-se este haicai: “Artesã holística ∕ a aranha desentranha a teia ∕ e enfeita o dia”. Para o segundo, em seu ludismo metalinguístico e intertextual, o exemplo da página 18: “Num iluminuto ∕ corri atrás do haicai ∕ e ele leminskivou-se”.
Quadros da paisagem, os ciclos naturais, água, estrelas, bichos, insetos, tudo se organiza poeticamente no limite dessa forma singular. Mesmo situações metafísicas são tocadas pelo gume das palavras no seu rigor revitalizante, e, certas motivações, a exemplo da morte, são retomadas sob a luz de intenso lirismo, como demonstra o último haicai: “Em tua última noite ∕ cisnes cantarão algures ∕ a hora do teu pó”.
São pequeninas amostras do seu métier. O bastante, contudo, para se perceber que estamos em companhia de um mestre do gênero. Um mestre que cultiva, em silêncio e sem pressa, a terra renovável da melhor poesia, lá nos confins da praia de Maragogi, bafejado pelo adágio das ondas do mar e pela “verdade vazia e perfeita” do azul do céu.
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A lírica amorosa é aproveitada, dentro de seus compassos de perdas e ausência, pela dicção de Astrid Cabral, em Coração à solta (Rio de Janeiro: Kade, 2021). Um coração que, enquanto órgão da recordação, enquanto instância essencial do lírico, traz o passado de volta e faz da ausência uma presença encantatória, muito embora, não raro, dolorida e dolorosa.
Tema dos mais canônicos, dos mais comuns na tradição do lirismo universal, também dos mais difíceis, uma vez que se corre o risco de se cair no puro confessionalismo, com seus soluços e lágrimas, ou de se percorrer a abstração conceitual de teor filosófico, com seus truísmos e axiomas nem sempre sustentáveis.
Penso que Astrid Cabral, já na altura de sua plena maturidade no trato do verso, escapa ao dualismo dessa armadilha e traça seu caminho, sua via-crúcis, sua “peregrinação”, como diz Alexei Bueno, em prefácio, em torno do amor, tentando captar sua experiência plural e multifária, suas modalidades diversas e paradoxais.
As maneiras de amar, os aspectos trágicos do amor, os desastres, o clímax, a união, a tristeza, a cegueira, a revelação e o desenlace, entre outras tonalidades e perspectivas da sua rica fenomenologia são exploradas em poemas construídos com disciplina e sensibilidade.
O erotismo, por exemplo, comparece em moldura bem medida, num texto como “Climax”, onde o toque físico se converte em dimensão cósmica, senão vejamos: “Ao lado do orgasmo ∕ que são palmas e aplausos? ∕ Da vida o espetáculo mor ∕ dá-se mesmo na alcova ∕ nunca em nenhum palco. ∕ É quando em lance de luz ∕ o vasto universo se reduz ∕ e próximo nos transpassa”. “Corpo e alma”, “União” e “Milagre” reforçam, no mesmo timbre e na mesma cadência, a esfera da sagração no encontro raro de carne e espírito.
A marca estilística é toda contensão. Se o tema pressupõe densidade, a materialidade dos versos se põe em perfeita sintonia com seus apelos semânticos, no seu dizer e revelar, sem excessos verbais nem artifícios retóricos.
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OPINIÃO - 22/11/2024