João Pessoa, 10 de maio de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Não gosto de poesia adjetivada. A não ser aquela que se prende naturalmente às regras tradicionais dos gêneros literários. Isto é, do épico, do lírico e do dramático. Poesia infantil, poesia negra, poesia feminista, poesia gay, poesia marginal, poesia política etc. etc. constituem apenas artifícios teóricos e vias doutrinárias sem qualquer consistência analítica ou meras categorias culturais inadequadas para a caracterização do fenômeno estético.
Para mim, fala mais alto a solidão do substantivo “poesia” do que a eficácia ou o preconceito dos atributos que vêm de fora das intrínsecas e genuínas qualidades do poético. Poesia não tem nome. É poesia ou não é.
Tais reflexões me ocorrem quando leio a segunda coletânea de poemas de Piedade Farias, intitulada Balaio, Sinhá (João Pessoa: Ideia, 2020) que, aos menos avisados pode parecer mais um falso exemplo da poesia dita infantil, ou seja, da poesia destinada à recepção das crianças.
Eu não diria isto!
A propósito, Yó Limeira, que assina o prefácio da obra, toca decerto na ferida da questão, com estas palavras reproduzidas na contracapa: “E Balaio, Sinhá – como o arco íris de alfenim – é livro de crianças de todas as idades. Para os pequenos, um estímulo a este olhar inaugural diante das coisas mais simples. Ao leitor adulto, que perdeu a capacidade de brincar com a imaginação, de brincar com as palavras, a poeta vai dando todo o tempo suas lições de ludismo”.
Concordo plenamente. Seus poemas podem ser lidos e podem agradar, portanto, a todo tipo de leitor, dos nove aos noventa, desde que este leitor tenha sensibilidade e predisposição para apreciar o jogo de palavras com que arruma seus textos, o humor de suas ideias, as insinuações de sua fantasia, o metaludismo de certas imagens e a deliciosa malícia de certas soluções permitidas e exploradas no lavor da criação poética.
“DE A, de B e de Z”, poema das páginas 44 e 48, em seus versos heterométricos e em suas estrofes variadas, traz à tona as propriedades semânticas de certas palavras, vistas, no entanto, sob a perspectiva lúdica e poética, como, por exemplo nestas passagens: “JANAÍNA quer dizer: ∕ A mais linda do lugar: ∕ É chamada de Rainha ∕ E também de Iemanjá. ∕ Seu travesseiro é a espuma ∕ Que cobre as águas do mar…”; “NADA é uma palavra ∕ Tão imensa quanto tudo… ∕ E se não me iludo ∕ Vi que as duas apressadas ∕ Iam-se de mãos dadas ∕ Ai que susto!”, ou, na magia concentrada deste dístico singular; “VOAR é palavra mágica ∕ Reinventa-se no ar…”.
O humor, por sua vez, se faz presente no título ceciliano “Isso e Aquilo” (P. 51∕52), conforme podemos verificar nesta estrofe: “Todos os dias, Ana vem ∕ requebrando, requebrando, ∕ Ainda só bisbilhotando ∕ O que convém e não convém… ∕ Parece, mal comparando, ∕ Uma galinha ciscando à procura de xerém…”.
Já a série de poemas, “Caixinhas mágicas”, constitui uma pequena e preciosa “gramática da fantasia”, para me valer do sugestivo título do poeta e pedagogo italiano Gianni Rodari. Região axial do livro, ponto nevrálgico do exercício poético, estas caixinhas nutrem o leitor com fantasia, imaginação, humor e ludismo.
De sapatos, de fósforos, de doido, de segredos e de livros, cada caixinha comporta um saboroso universo de surpresas. Na “Caixinha de Livros”, por exemplo, a memória popular se harmoniza com os veios clássicos e eruditos da tradição literária, pois, enuncia a poeta: “Dentro da arca ∕ A velha Totonha ∕ (de boa memória) ∕ Contava histórias ∕ Aos montes… ∕ Também Quixote ∕ Lembrava as glórias De Rocinante… {…} Havia dias ∕ de lutas e de espada ∕ Entre os Moicanos ∕ E o inferno de Dante ∕ Naquela arca ∕ Reinava…”.
Preexiste, sem dúvida, ao mundo poético de Piedade Farias, aquele saber de experiências feitio de que fala o genial bardo português, colhido sobretudo na riqueza da cultura oral e popular. A tópica nordestina, com seus motivos típicos, do imaginário e do folclórico, da paisagem e dos costumes, dos bichos, dos brinquedos, das letras e das palavras fermentam o tecido substancial de sua dicção lírica.
Às formas simples de seu modelo expressivo corresponde um conteúdo humano encantatório, forjado nos ingredientes sensíveis da imaginação criadora. Cada poema como que conta uma história, uma história sem dogmas morais e sem a didática repressiva das narrativas de exemplo e proveito.
Com isto quero dizer que a poesia de Piedade Farias, quer no livro anterior, quer neste Balaio, Sinhá, sem pretensões, singela, focada nos elementos da tradição, musical, coloquial e imagética, preserva os valores artísticos da palavra.
A ela deve se associar a beleza plástica das xilogravuras de Rose Catão, sua parceira e amiga, no dinâmico diálogo que se opera entre as duas linguagens. Linguagens que, mesmo separadas, mesmo independentes e autônomas, como que se fundem na territorialidade de uma mesma sintaxe, no espanto e no entusiasmo de uma mesma fala e uma mesma configuração.
Neste livro, a lacuna fica por conta da ausência de dados biobliográficos da autora. É compreensível que ela e outros, por esta ou aquela razão, não queira dispor de seus dados pessoais. Mas quero crer que historiadores da literatura, críticos literários e o público leitor têm o direito de saber. Até porque tais informações, mesmo que sintéticas, contribuem para situar melhor o leitor diante da obra e do autor. Penso, aqui, nos incontornáveis imperativos de uma ética da informação.
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TURISMO - 19/12/2024