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Clara Velloso Borges é escritora, professora de literatura e mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]  

A todas as ovelhas negras

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publicado em 12/05/2023 ás 07h00
atualizado em 11/05/2023 ás 15h32

Século XX. Uma mocinha, fascinada por artistas e animais, deseja aprender a fazer música. Seu pai, dentista, negocia um tratamento por aulas de piano. Após muitos ensaios, a apresentação. Diante da plateia, a garotinha fez xixi nas calças. Muitos disseram para a menina parar ali, já que tinha medo de palco. Não parou. Conheceu esse tal de Roque Enrow, que a mãe não entendia muito, e o palco passou a ser seu lugar seguro. Coisas da vida. Seja com Os Mutantes, seja em carreira solo, Rita Lee cantou canções iluminadas de sol e fez tudo que queria fazer.

Ao longo da própria trajetória, riu de si mesma, depreciando suas habilidades perante o microfone e os instrumentos. Dizia-se desafinada, contrariando João Gilberto, que a ouvia dentro do tom. Contudo, tinha voz até literária, assinando livros infantis e uma autobiografia. A maior virtude de seus textos não poderia ser outra: a autenticidade. Rita Lee se arriscou a fazer literatura com uma linguagem rock and roll, misturando gírias, expressões em outras línguas e termos técnicos. É quase possível ouvir a cantora falando o que está escrito.

Se, quando alguém escreve sobre si, tende a omitir eventos que lhe causam vergonha, Rita fez o oposto: escancarou toda a porra louquice. Falou das travessuras feitas com as irmãs quando criança (algumas de muito mau gosto para serem consideradas apenas traquinagem), assumiu as drogas, a bipolaridade e mais meia dúzia de transtornos. É para ovelha nenhuma se sentir negra.

Rita foi intensa, com uma existência de muitos acordes e de muito amor. Viveu uma história de contos de fadas com Roberto de Carvalho, seu companheiro por quase 50 anos. O casal foi apresentado por Ney Matogrosso e nunca mais se separou. Como nem só de amor vivem os ícones, fora dos palcos, quando botava em xeque as desavenças, Lita Ree adotava uma postura “diga que me odeia, mas diga que não vive sem mim”. Criticou os Mutantes (que a expulsaram da banda) e um punhado de outros músicos. Paciência. Até discordâncias viram melodia.

Como artista, foi completa. Preocupava-se com cada etapa do show: passava som, fazia a própria maquiagem, buscava o figurino ideal, elaborava números… Consagrou-se como roqueira pela atitude, pela inovação, pela preocupação em fazer boa música, sem vender a alma.

Foi a cantora mais censurada da ditadura militar.  Foi feminista antes de falarmos de feminismo. Seus discos, a exemplo do LP Fruto Proibido, aquele cor de rosa choque, venderam como água. Alguns anos atrás, um de seus netos, ainda muito menino, foi levado à exposição do Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, que homenageava Rita. A mãe da criança precisou explicar que vovó Rita era famosa, ou seja, conhecida e amada por muita gente. Então, a criança traçou um paralelo: “como a Galinha Pintadinha?”.

Maior do que a Galinha, Rita já estava fora do palco há alguns anos. Essa semana, se despediu em definitivo do plano terrestre, deixando uma legião de fãs com “mania de você”. A todas as ovelhas negras, um pedido: que façamos tudo que queiramos fazer.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB