João Pessoa, 13 de maio de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A língua é uma respeitável e respeitada Senhora, digna, decente, e que, em nome de sua honorabilidade, age sem titubear. Não se submetendo a caprichos, ela se volta, impiedosamente, contra os que, não sabendo manuseá-la, desconhecem os seus meandros.
Já escrevi algumas vezes sobre a língua portuguesa e suas minúcias, textos desencadeados por um tempo em que, cada vez mais, há pessoas que acham poder ditar como a língua deve ser, ou que se põem a falar de todos os assuntos, sem que tenham um conhecimento adequado das armadilhas que essa vetusta Dama guarda nas suas intimidades. Cada vez que me deparo com um texto, cuja platitude é de arrepiar, sempre me lembro de um dos mais saborosos sonetos de Gregório de Matos, (foto) poeta baiano seiscentista que, vivo fosse, estaria na lista dos proscritos, o index auctorum prohibitorum dos prepotentes que temem, mais do que as armas convencionais, a mais letal de todas as que conheço: a ironia.
Reproduzo, para o gáudio de quem gosta de uma boa ironia, articulada com suprema inteligência, e para o infortúnio dos que a detestam, os dois quartetos iniciais deste soneto, que é um pesadelo para os superficiais. Não o reproduzo completamente, porque o último terceto irá, certamente, ofender os que afetam “suscetibilidades de criança”, parafraseando o poeta do Eu:
Este padre Frisão, este sandeu,
Tudo o demo lhe deu, e lhe outorgou,
Não sabe musa musae, que estudou,
Mas sabe as ciências, que nunca aprendeu.
Entre catervas de asnos se meteu,
E entre corjas de bestas se aclamou,
Naquela Salamanca o doutorou,
E nesta salacega floresceu.
Como diria o meu amigo e confrade Hélder Moura, mais cirúrgico impossível. Entre mancos e cegos, os asnos e as bestas florescem, cumprindo o que diz o ditado latino asinum asinus fricat, um asno esfrega outro asno.
O problema é mais grave do que se pode imaginar, pois o desconhecimento da língua, a falta de leitura e o escrever desconexo grassam de modo jamais visto, principalmente nos meios ditos intelectuais.
Vendo uma postagem sobre a advertência de Machado de Assis, para a edição da Garnier de 1902, de seu volume Poesias, explicando o porquê da ausência do prefácio de Caitano Filgueiras, a pessoa que comanda a postagem deixa claro não saber a diferença entre um “pretérito mais-que-perfeito” e um “futuro do presente”, confundindo “cegara” com “cegará”. Nem a ortografia da época, ajudou na leitura – “cegára”.
Entendo perfeitamente a confusão, tendo em vista que o pretérito mais-que-perfeito, há muito, anda em desuso, nesta Província de Santa Cruz, vulgarmente chamada Brasil… Apesar da fineza e beleza do estilo camoniano – “lhe fora negada/, como se não a tivera merecida”, “mais servira se não fora/para tão longo amor, tão curta a vida…” – nem na escrita se usa mais este, mais do que um tempo, um aspecto verbal. Mas ele permanece, intocável, no sistema da língua.
O que contribuiu para a confusão entre “cegara” e “cegará” não foi só o desuso, na escrita e na oralidade. Foi, sobretudo, a falta do hábito de leitura, mormente, em voz alta, que impediu a observação da acentuação. Associe-se a isto o total desconhecimento da estrutura e do funcionamento da língua, na ignorância do que significa um sufixo modo-temporal, impossibilitando distinguir entre o /-ra/ átono, do mais-que-perfeito, e o /-ra/ tônico, do futuro do presente.
Não quero me alongar, mas não poderia deixar de me referir a outro grande deslize perpetrado diuturnamente contra a nossa vetusta Senhora. Trata-se da flexão da segunda pessoa verbal. Vendo o filme Medieval (Netflix, 2022, República Tcheca, direção de Petr Jákl), observei que o tradutor optou pela segunda pessoa do plural. Uma verdadeira lástima. Há quem insista em empregar a segunda pessoa, do singular ou do plural, sem atentar para a dificuldade de sua flexão, sobretudo quando se trata do imperativo, mais ainda o imperativo negativo.
Gostaria de deixar bem claro que não é o meu desejo cercear o direito de quem quer que seja de postar ou publicar o que quer que seja. Apenas lembro que depois de postado ou de publicado, o objeto já não é mais de domínio privado. Tornou-se público e sujeito aos olhares de todos, sobretudo dos que formam o séquito da venerável Senhora, a Língua Portuguesa, prestando-lhe sempre as devidas reverências.
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