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Clara Velloso Borges é escritora, professora de literatura e mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]  

Vem pra rua

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publicado em 19/05/2023 ás 07h00
atualizado em 18/05/2023 ás 21h00

Primeiro levaram as lanchonetes, mas eu não me importei com isso, eu não comia nas lanchonetes. Em seguida, levaram alguns cinemas, mas eu não me importei com isso, poderia fazer uma concessão. Depois agarraram as livrarias, mas como tenho minha biblioteca, também não me importei. Agora não tenho mais espaços para frequentar, mas já é tarde. Como não me importei com a cidade, todos os estabelecimentos terminaram no shopping.

O parágrafo acima vem em paródia ao poema É preciso agir, de Bertold Brecht. Sem dúvidas, o retrato do dramaturgo alemão em seus versos é muito mais tenebroso: minorias são levadas durante as mais horrorosas guerras que a humanidade viu nos últimos séculos. Contudo, subsiste o sentimento de indiferença perante grandes mudanças sociais, que pode ser trazido para muitas realidades.

Recentemente, passando por um raro cinema de rua, pensei em como estes espaços foram se extinguindo. Pouco a pouco, todos foram levados ao shopping. A linguagem cinematográfica, múltipla em suas expressões e ideias, ficou presa à receita comercial. Afinal, estando em um shopping, os cinemas partem do mesmo princípio das lojas: têm que vender. Assim, nos acostumamos a ter quase todos os ingressos destinados ao mesmo filme, um longa pasteurizado de heróis americanos batendo uns nos outros, sem qualquer inovação.

É um fenômeno similar a extinção das livrarias de rua. Também foram levadas ao shopping, com divulgação dos mesmos títulos, sem livreiros curadores recomendando as obras que devoraram como traças. Embora sejam várias as formas de acessar a cultura, o pleno exercício dos direitos culturais, garantido pela Constituição Federal, em seu art. 215, fica mais difícil quando as livrarias saem das ruas. Até mesmo estabelecimentos tradicionais de rua não têm resistido. A Livraria Cultura da Avenida Paulista, uma catedral literária, lamentavelmente fechou as portas devido à falência do grupo, deixando uma série de histórias por serem contadas – dentro e fora dos livros.

Claro, nem tudo é horrível em relação a esta concentração de estabelecimentos culturais em shoppings. Há infraestrutura, comodidade, boa localização. Entretanto, quanto não se perde com a falta de diversidade de títulos, bem como com os altos preços cobrados pelas redes de cinema? Enquanto se espera a hora da sessão, pode-se até passear pela livraria do shopping, aquela de rede, com uma estante inteira abrigando apenas o best-seller do príncipe Harry. Entre as lojas climatizadas, fica difícil não consumir arte distantemente da descrição do poeta José Paulo Paes: “Pelos teus círculos / vagamos sem rumo / nós, almas penadas / do mundo do consumo”.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB