João Pessoa, 31 de maio de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A repórter quer saber qual o livro, entre tantos de minha biblioteca, eu recomendaria como leitura indispensável. Não hesito. Vou à estante de filosofia, retiro um exemplar dos Ensaios, de Montaigne (foto) , e lhe digo: “Este”.
Pode parecer estranha tal indicação. Estamos em pleno século XXI, e sugiro, curiosamente, uma obra do século XVI, tecida e elaborada em meio às guerras civis e religiosas de uma França dividida e dilacerada pelas sanhas do poder político e espiritual. Pode, sim, parecer estranho, mas não é!
É claro que para se compreender bem a mensagem de Montaigne, em todos os seus aspectos cambiantes e multiformes, não se deve passar ao largo do contexto histórico e cultural em que seus Ensaios foram escritos. Não há dúvida de que os Ensaios são uma obra do século XVI, que registra suas contradições ideológicas e faz eco às suas perplexidades éticas e filosóficas, não obstante sua capacidade de, em virtude da maleabilidade e abertura significativas dos conceitos e reflexões, alimentar o interesse receptivo de séculos vindouros.
Montaigne é um daqueles autores que, falando à sua época, dialogando com seus contemporâneos, estende o tapete da comunicação para prosear com os homens dos tempos idos e dos tempos por vir, numa espécie de circularidade acrônica típica das obras que se fazem clássicas. Ou seja, obras de todos os tempos e de todos os povos. Por isso mesmo, obras sempre contemporâneas!
Lendo-se Montaigne, leem-se, de certo modo, as linhas de uma tradição cultural por onde trafegam gregos e latinos, sobretudo latinos, responsáveis pela formação de uma personalidade intelectual das mais ricas, profundas, provocativas e ambivalentes. Reivindicando o seu eu como tema central de suas investigações filosóficas, contempla uma variedade imensa de assuntos, tanto do mundo teórico quanto do mundo prático, principalmente do mundo prático, com uma desenvoltura e uma singularidade que surpreendem não somente seus pares, mas todos aqueles que, em qualquer período, se debrucem sobre suas páginas.
Seus temas, em geral, são os temas de sua época. Não há novidade de conteúdo em suas inquietações físicas e metafísicas, conforme elucida Peter Burke, em opúsculo dos mais didáticos. Seu discurso tem muito de colagem e de costura intertextual, pois Montaigne é um quase obsessivo citador. Cita Tácito, Plutarco, Lucrécio, Sêneca, Epicuro, Diógenes, Zenão, Calímaco e tantos e tantos outros, embora o faça sem servilismo, fiel, portanto, à liberdade de pensamento e ao jeito pessoal de olhar as coisas e de apreciar a textura indefinível das experiências humanas.
Se a frase de que se apropria, por acaso, é de Sêneca, fá-lo, retirando-a do contexto original e repondo-a numa situação sintática e semântica inteiramente novas. Diria mesmo, indiossincrática, pelo tom não raro irônico, cético e cínico em que vem modulada estilística e mentalmente. Isto, sem que eu me reporte às suas tiradas e boutades oblíquas que desestabilizam dogmas e axiomas do racionalismo ocidental., abrindo um leque extremamente flexível para a aventura do pensar. Um exemplo só, como arremate dessa crônica: “Quando brinco com a minha gata, quem sabe se ela não se distrai comigo mais do que eu com ela?”.
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OPINIÃO - 22/11/2024