João Pessoa, 16 de junho de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Recebo a incumbência de prefaciar “Camboinha: a bela praia”, livro de cordel da escritora, historiadora e professora Maria Auxiliadora Borba, membro da Academia Feminina Letras e Artes (AFLAP) e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP), o que muito me honra por essa oportunidade.
O que seria a literatura de cordel? É um gênero literário que modernamente adota como obrigatoriedade três elementos: a métrica, a rima e a oração. Popular, vem da Europa e tem raízes nos povos greco-romanos, fenícios, cartagineses e saxões. Este estilo chegou a Portugal e Espanha por volta do século XVI. Para o Brasil sua linhagem vem dos colonizadores portugueses, que herdaram o costume dos trovadores medievais nos séculos XII e XIII, que deram início à criação de métodos de impressão em larga escala na Renascença, constituídos e publicados em pequenas brochuras impressas, de baixo custo, que alcançavam grande circulação, oportunizando a distribuição da palavra, que até então era apenas cantada. O cordel nasceu popularizando-se por meio da exposição de papéis pendurados em cordas — ou cordéis, como são chamadas em Portugal.
Contribuíram para a manutenção do imaginário popular e folclórico dos estados do Norte e do nordeste brasileiro, como Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Bahia e com a preservação dos costumes regionalistas. Além do incentivo à leitura ajudaram na diminuição do analfabetismo nessas regiões. Os conteúdos, em geral, mesclam o humor e a ironia com uma abordagem crítica de questões presentes no cotidiano e na cultura popular. Tomam formato de versos ritmados e metrificados que fazem a sua musicalidade. Adotam linguagem simples e temas que contam histórias de casos, costumes locais, lendas, personagens folclóricas e identidades da cultura local. Transformam-se às vezes em canções que se propagam pelo Brasil, cantadas por violeiros e repentistas. São ilustrados por xilogravuras, desenhadas nas páginas dos poemas.
Possui uma técnica própria que uma vez construída a matriz preliminar do esboço, é possível imprimir inúmeras vezes. É comum que o cordelista seja o autor, o ilustrador, o produtor, o intérprete e o vendedor da obra. O cordel torna-se, no ano de 2018, Patrimônio Imaterial Brasileiro pela relevância que tem na divulgação e manutenção das identidades culturais e das tradições literárias regionais. Em 1º de agosto comemora-se o Dia Nacional do Cordel. No dia 19 de novembro é comemorado o “Dia do Cordelista”, em homenagem a Leandro Gomes de Barros, nascido em 19 de novembro de 1865.
Neste universo cordelista Leandro Gomes de Barros foi o primeiro brasileiro a escrever cordéis. Produziu 240 obras que retrataram o imaginário popular do Nordeste brasileiro. É o caso da peça “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, baseada nos cordéis de Barros. Outros notáveis, como Patativa do Assaré, Zé da Luz e João Martins de Athayde, fazem versos de forma melodiosa e cadenciada, acompanhados de viola, como também fazem leituras ou declamações empolgadas e animadas para conquistar os leitores. Os homens foram pioneiros nessa área da literatura do cordel. A primeira mulher brasileira cordelista foi a paraibana Maria das Neves Baptista Pimentel ao publicar um folheto de cordel, em 1938. Depois dela seguiram outras em menor número.
Fiz este preâmbulo para situar a obra da professora Auxiliadora Borba, “Camboinha: A Bela Praia”. A pandemia do COVID e da recomendação “ficar em casa” em quarentena, oportunizou a Auxiliadora elaborar este livro, que se constitui em um resgate histórico mapeado da Praia de Camboinha. Em estilo cordelista, o livro foi confeccionado com dois aspectos: No primeiro, Auxiliadora faz uma sinopse construindo a história da Praia de Camboinha, captando o que observou e viveu com os amigos e companheiros de veraneio. Situou-o geograficamente, descortinando o lugar e o contexto humano/cultural/ ambiental e natural onde está inserido.
Nesse enfoque, aborda a vivência e convivência dos pioneiros moradores e de suas famílias, destacando personagens ilustres que ali residiram. Traduz uma trajetória literária em forma de sextilhas, resultado de exaustiva investigação exploratória documental e de história oral junto à comunidade ali residente. Fala dos hábitos, folguedos, instantes de laser e costumes de seus habitantes, da gastronomia peculiar que era consumida e adotada por eles, desde frutos do mar a comidas típicas do sertão dos moradores originários do interior da Paraíba. Nas confraternizações realizadas, os comes e bebes se misturavam à culinária típica do litoral com as do sertão, proporcionando uma riqueza de sabores e detalhes de práticas que faziam o resgate cultural eclético e versátil exibido na gastronomia. Acrescentem-se, ainda, os grupos de músicos e poetas que abrilhantavam os encontros. Auxiliadora procura decantar os versos com aspectos saudosistas, comparando a Camboinha de antigamente com a de hoje, demonstrando o lirismo do passado e enfatizando os aspectos impostos pelo progresso e o desenvolvimento existentes. Para retratar tudo isto, na sua visão de cordelista, capta manifestações e registra acontecimentos ocorridos, relatando cenas pitorescas, hilariantes, gestos próprios desse povo que durante o período de verão se unia como irmãos.
No segundo momento, Auxiliadora colhe o depoimento de vinte e oito pessoas que viveram e ainda vivem em Camboinha. Nos testemunhos os conteúdos vêm carregados de sentimentos, lembranças, fatos, encontros e valores cultivados e vivenciados em família e com a comunidade de Camboinha. As amizades surgiam e os laços se estreitavam entre as pessoas durante aquele período, reforçado por atividades que se faziam em conjunto: jogar baralho, pescar uma agulhinha à noite, tomar banho de mar, passear em Areia Dourada e por aí vai… Cada um caracteriza-se pelas peculiaridades experimentadas em seu ambiente doméstico, no aconchego de seu lar, usufruindo do convívio salutar que aquele lugar oferecia e que, em determinadas ocasiões, parecia fazer parte de uma mesma e grande família. A visão de alguns depoentes assume o sentimento nostálgico, uma vez que muitos deles viram ali crescerem seus filhos e hoje o tempo lhes mostra a evolução natural de adultos realizados, casados, já pais, com a história se repetindo.
Os que tiverem acesso a este livro vão dar um passeio pela história da Praia de Camboinha, onde veem retratados aspectos do seu desenvolvimento físico, geopolítico e demográfico, as expressões da cultura local, narrados por Auxiliadora, que se consagra como uma exímia poetisa popular, autêntica cordelista. Desenvolver essa modalidade poética não é tão fácil pois a estrutura de construção das estrofes há que seguir regras: tema, métrica e ritmo. Auxiliadora demonstrou possuir pleno domínio do assunto e o fez muito bem, adotando a métrica em forma de sextilhas, estrofe ou estância de seis versos de sete sílabas, com o segundo, o quarto e o sexto rimados; verso de seis pés, colcheia, repente. Estilo muito usado nas cantorias, onde os cantadores fazem alusão a temas ou eventos usados pelos cantadores e repentistas. Ariano Suassuna (1999) considera o cordel “como um espaço cultural criado pelo povo para expandir as raízes da cultura, do Brasil real e verdadeiramente autorizado a criar uma arte popular brasileira”.
Nesse sentido, assim se expressa Carlos Drummond de Andrade: “A poesia de cordel é uma das manifestações mais puras do espírito inventivo, do senso de humor e da capacidade crítica do povo brasileiro, em suas camadas modestas do interior. O poeta cordelista exprime com facilidade aquilo que seus companheiros de vida e de classe econômica sentem realmente. A espontaneidade e a graça dessas criações fazem com que o leitor urbano, mais sofisticado, lhe dedique interesse, despertando ainda a pesquisa e análise de eruditos universitários. É esta, pois, uma poesia de confraternização social que alcança uma grande área de sensibilidade”. Os autores citados demonstram como deve ser a poesia de cordel, pelo que não há nada mais a acrescentar. Auxiliadora consegue, neste seu livro, dar vasão a sua veia poética, sacramentando um velho sonho. A leitura deste compêndio vai permitir aos leitores sentir a veracidade do que estou a dizer. Que tirem bom proveito!
Regina Rodriguez Bôtto Targino
Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP)
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TURISMO - 19/12/2024