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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Sobre o diário

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publicado em 21/06/2023 ás 07h00
atualizado em 20/06/2023 ás 19h02

 

 

No meu programa cotidiano de leitura, não consigo passar sem um diário. Quer de autor brasileiro, quer de autor de literaturas estrangeiras, sempre estou rastreando, no compasso intermitente das horas, as páginas desse gênero íntimo e heterodoxo.

Nele, autor e narrador como que se confundem na tentativa, imagino que inútil, de superar as tensões e os malogros no jogo das máscaras. Sou dos que acreditam, como sugere o grande poeta de minha geração, José Antônio Assunção, que toda palavra trai. Toda linguagem é trapaça.

Este hábito de ler diários já vem de longe, e, no seu cultivo permanente, me fez ler e acumular razoável quantidade dessas obras singulares. Contemplo a estante em que os arrumei e namoro alguns nomes que me são caros nesse tópico especial e amado de minhas leituras.

Dos de fora, destaco a presença forte dos diários de algumas escritoras e poetas, a exemplo de Virgínia Woolf, Katherine Mansfield, Raíssa Maritain, Anais Nin, Susan Sontag e Silvia Plath. A estes junto os de Miguel Torga, Franz Kafka, (foto) Ricardo Píglia, Virgílio Ferreira, Albert Camus, Bernardo Soares, Charles Baudelaire, Giovanni Papini, Amiel e os irmãos Goncourt. Dos de casa, a lista é bem maior, porém, chamo a atenção para os diários de Humberto de Campos, Josué Montello, Lúcio Cardoso, Maura Lopes Cansado, Walmir Ayala, Herberto Sales, Roberto Alvim Corrêa, Eduardo Frieiro, Giberto Freyre, Antônio Carlos Villaça e Ascendino Leite.

Com essas páginas alinhavadas sob a lógica severa do tempo (anos, meses, dias, horas) tenho convivido naquele típico exercício circular de leitura que não tem fim. Uma anotação aqui, um comentário ali, uma confissão acolá, e mais e mais observações, críticas, digressões, farpas, ironias, deboche, acusações, injúrias, fraquezas, vícios, virtudes, verdades e mentiras, factualidade e fantasia, tudo se mistura na construção do olhar do diarista. O diarista que, olhando o mundo em sua volta, deixa-se olhar pelo leitor, na sua sabedoria e na sua insensatez.

Tecido ao calor dos dias e sob as circunstâncias mais diversas, o diário exige, por parte de quem o escreve, intenso sentido de observação, capacidade reflexiva, olhar crítico, poder de análise e autoanálise, disciplina e curiosidade, entre tantos requisitos que podem condicionar a tarefa desafiadora de sua escrita e sustentação.

Aqueles que se entregam, tanto à escrita quanto à leitura de diários, são criaturas como que tomadas pelo mistério da falta, pela magia da ausência, pela delicada intuição de que a linguagem ainda não diz tudo, mesmo que se multiplique em diferentes direções e assuma os matizes mais surpreendentes no território da expressão.

Pode parecer paradoxal, mas é no diário que mais dolorosamente se cristaliza a sensação de incomunicabilidade que rege, a partir da insólita pauta de nossa existência, o incontornável diálogo consigo mesmo e com os outros.

Sem fugir ao imperativo da precariedade de qualquer esforço linguístico e expressional, o diário, tentando investigar a verdade factual sem intermediações nem embustes retóricos, não consegue escapar ao peso ficcional que incide sobre qualquer palavra no discurso.

Verdade ou invenção. Eis a questão chave que macula o interior da forma, decepando suas paredes contraditórias e fazendo de sua estrutura carnal uma espécie de mitografia de fantasmas, mesmo que a vida esteja pulsando ali com seus prêmios e suas derrotas.

Isto, sem que me reporte à paixão que move o diarista na elaboração de seus enredos subjetivos ou na arquitetura de suas descrições das coisas, dos acontecimentos e dos seres que contornam à sua sensibilidade e imaginação.

Sensibilidade e imaginação, sim, porque não tenho nenhum pudor em afirmar que o diário constitui obra estética e prosa ficcional das mais legítimas e, em alguns modelos, com alta voltagem poética.

Insere-se perfeitamente nessa família difusa e ambivalente de que fazem parte as cartas, as confissões, as autobiografias, as biografias e as memórias. Para mim, todos de valor literário. E com muita poesia e ficção.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB