João Pessoa, 05 de julho de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Ontem bebi todas, com todas as vozes que amo.
Lá no Lipa, ouvi Núbia Lafayete entre os inícios rituais de três ou quatro uísques. Uísque suave e seco, um Old Parr, que pode se conformar ao veludo caliente de sua voz e à convicção de que ninguém canta a dor de cotovelo, os dissabores do ciúme, como ela. Nem mesmo Lupicínio Rodrigues, que sabe tudo de amor não correspondido.
Sempre gostei de Núbia. Tive a pequenina glória de a conhecer pessoalmente e, mais, de lhe pagar um trago, lá num bar-restaurante de Lagoa seca. A noite estava linda, um frio serrano cortava minha alma, e Núbia cantou. Cantou para mim e para todos, naquele momento em que a tristeza e a melancolia vestiam o mistério da noite.
Mais adiante era Esperança, cidade do poeta Silvino Olavo, onde Maysa me esperava com sua voz rouca, quente e desesperada, no mais sublime “Ne me quittes pas”. Sempre estou com Maysa, quando a tristeza não tem fim e me ronda os aceiros do coração. Sua voz possui o poder de sacralizar a dor e a vontade de morrer, principalmente se baixa aquele crepúsculo sem saída, a se espedaçar no desencanto do mundo.
Elis Regina é outra que não largo, faça sol, faça chuva. Gosto de “Corsário”, “Como nossos pais”, “O bêbado e o equilibrista” e “O lixo ocidental”, na sua voz perfeita, feita de cristal e santidade. Elis é daquelas criaturas que não podem nem devem viver muito. O mal-estar da civilização não comporta a agônica poesia que se faz na sua voz que canta.
Dalva de Oliveira, Elizete Cardoso, Dolores Duran, Ângela Maria, Maria Bethânia, Gal Costa e Adriana Calcanhoto também compõem o itinerário de meu périplo pelos mares da boemia. Não tanto como aquelas, porém, presentes nas pontuações ocasionais de minha melomania íntima e amadorística.
Mais uísque, mais solidão, mais vozes que amo, mesmo que o país se deixe abater pela violência, indecência, corrupção e desigualdade social. A propósito, é muito bom sair por aí, sem lenço nem documento, como na canção de Caetano Veloso, só para prosear consigo e escutar as vozes que amo.
É chegada a hora de Joan Baez, vinda pelas janelas do vento lá dos vales do Alabama. Gosto do tom e do timbre de sua voz campestre, suave e aberta para os sortilégios da fantasia. Não sei por que, sempre alterno suas canções com as canções de Cesária Évora, talvez pelos vocativos telúricos e pela densidade lírica que as podem unir numa determinada circunstância ou distanciá-las em tantas mais.
Noite alta, mais uísque, mais vozes que amo.
Bessie Smith, Billie Holiday, Areta Franklin, Ella Fitsgerald, Sarah Vaugham e Nina Simone. O blues, o jazz, rasgados no lamento de cada voz e cadenciado num compasso que paradoxalmente dói e alivia. Há, nestas vozes, inquietação e repouso; realidade e devaneio. Bendita a dádiva de viver só para tê-las no silêncio e na solitude de um bar que fecha!
Enfim, o fado. Adoro fado!
Concluo meu périplo, ouvindo Amália Rodrigues: “Nem as paredes confesso”, e Maria da Fé: “Valeu a pena”. Escuto duas ou três vezes. Descanso um pouco. Agora vou tomar o último uísque na companhia de Ana Moura e Marisa, a me deleitar com as suas respectivas interpretações do fado “Loucura”, para mim, o mais belo e o mais intenso de Portugal, “Ó, poetas de meu país”.
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TURISMO - 19/12/2024