João Pessoa, 25 de dezembro de 2011 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Puxo pela memória e não encontro ceia alguma na minha casa nos tempos de infância. No arquivo da nostalgia revisito os lares de minha Marizópolis com suas singelas luzes coloridas em árvores improvisadas ou nas paredes enfeitadas.
As badaladas dos sinos, os meninos pelas ruas. As roupas novas compradas para a data especial. O dinheiro minguado juntado. O passeio pela praça. A espera da seresta. Ao longe, olhares humildes para os carros novos dos visitantes mais abastados.
Já era época de férias. Aquela sensação de alívio da aprovação e o ar de liberdade de poder viver sem as pressões da escola e das cobranças de casa. Tempo de voar feito pássaro maneiro pelos corredores e recantos do pequeno e acanhado lugar.
Eram becos empoeirados, esgotos a céu aberto. A dependência da sede dava ao distrito uma imagem de desertidão. Isso aos olhos de hoje. Naquele ontem, as ruas de areia pra nós não fazia diferença alguma.
Aliás, eram nelas que a molecada se reunia, vinda de todas as partes, para sobre o chão molhado das chuvas de dezembro disputar acirrados jogos improvisados de trave-mirim, mesmo diante de protestos e amuos dos donos das casas vez por outra atingidas pelo barulho da bola em seus portões e janelas.
Namoro? Que nada! Isso era assunto pra gente grande, embora o coração também reservava olhares e suspiros diferenciados para as ingênuas paqueras, no máximo apimentadas com a brincadeira de “cair no poço”.
Ainda que nos fosse dada a oportunidade de escolher a fruta do beijo, não havia coragem suficiente para tamanha ousadia. Ainda mais na frente de tantos e arriscando virar motivo de galhofa, caso o desejo fosse rejeitado pela pretendente.
Gente pequena tinha mesmo era que aproveitar e se esbaldar nos ingênuos, porém divertidíssimos banhos de chuva nas biqueiras da igreja. O temporal excitava outra reunião espontânea da gente humilde que se banhava de esperança entre pingos e trovoadas do final da tarde.
Lembranças –
O livro das reminiscências traz o som da difusora da Capela de Santo Antônio ecoando no pequeno lugarejo a história do nascimento de Jesus Cristo de Nazaré. A narrativa entrava pela janela da frente a nos acariciar em plena noite de Natal.
Toda solenidade da época ficava na visita ao pequeno presépio montado dentro da igreja com peças quase minúsculas. A imagem do bom José, perto da manjedoura, batia no peito a sensação da falta do pai, ausente e mais tarde falecido em terras distantes.
O destemor de Maria vivificado na mãe que se fez consoladora, mantenedora e pai nas horas de frustração e medo dos desafios da vida. Timidez vez por outra vencida pelo sorriso e coragem arrancados por um irmão que amava hoje sem ligar pro amanhã.
Antes do jantar preparado, um dia inteiro de peregrinação por portas e casas, tentando amealhar o lucro das vendas dos produtos da Avon. Só assim haveria provisão para uma mesa um pouco melhor sortida.
Preocupação de mãe e chefe de família. Na verdade, nós não ligávamos muito ou nada pra isso. A nossa felicidade não estava no prato a ser servido. Nossas aspirações não passavam de ter sempre o de comer. O mais, Deus já havia nos presenteado com uma casa própria, herança de bisavó, e móveis singelos, mas úteis demais.
Saudades – Heron e Hernon. Éramos realmente grandes companheiros. Cada um com seu jeito e particularidade delineadora das diferentes personalidades. Um acanhado, tímido, medroso, prudente. Outro, hilário, como o próprio sobrenome profetizara, destemido, atirado, imprudente, mas de alegria contagiante.
Era um Davi, que desconhecia o próprio tamanho, e não reconhecia na sua frente nenhum Golias na hora de defender o irmão desnutrido, cuja aparência e personalidade garantiam a qualquer um dos moleques nenhuma reação a provocações e apelidos.
Ainda pequeno, ouvido no rádio. Nas AM’s de Sousa, Progresso e Jornal, os discos ressuscitavam pelas ondas médias a chegada do salvador da humanidade. Os “graves” dos solenes narradores inevitavelmente idealizavam nos meus ouvidos a voz paternal que o destino já quase apagara da memória.
Não sei ao certo se houve canções de ninar. Guardo apenas ainda vivo no recôndito do coração a brincadeira do “carneirinho”, talvez uma das poucas vezes que aproximamos tanto os olhares e os sorrisos. Puros.
Foi o que de mais marcante ficou, além do reencontro cinco anos depois do desaparecimento inexplicável. Só mais tarde pude entender que a convivência dos adultos não é tão simples como as brincadeiras que tornam inseparáveis vizinhos e amigos da rua.
Não havia preparativos, banquetes, convidados e nem festa alguma. Dona Nuita, avó-mãe, não perdia a missa por nada. Porque não era uma missa a mais. Era uma celebração diferente. A cidade toda se espremia na pequena igreja.
Depois estávamos recolhidos num dos quartos da casa. Dormíamos todos juntos. Era a forma inconsciente de celebrar nossa união fraterna e sintonia de corações e almas cheias de amor e devoção no peito.
Na rede, Marizete cantava. Os dois meninos, de um lado e do outro, acompanhavam o coro, plenos de felicidade e realização. Amanhã seria outro dia. Dia de superar as dificuldades. Dia de crer num dia melhor e mais benevolente.
Acordo desses flashes perto da minha nova família, assistindo Cleide cuidando agora dos nossos pequenos tesouros. Abro os olhos e me vejo longe da mãe que meu pai José chamava de Maria, com uma saudade danada daquele irmão que foi embora mais cedo. Triste? Não. Jesus, o autor do Natal, renova todas as coisas. Inclusive minha certeza de que um dia finalmente nos abraçaremos na ceia que os desencontros da vida nunca permitiu.
*Reprodução do Jornal Correio da Paraíba
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OPINIÃO - 22/11/2024