João Pessoa, 20 de julho de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Dizer que tudo tem seu lado positivo e seu lado negativo pode ser um clichê, mas não deixa, no entanto de ser uma verdade. A pandemia, por exemplo, me trouxe a consciência, que já existia em outros países, de que o sapato da rua não deve entrar em casa. A máscara, por mais incômoda que tenha sido, tornou-se um acessório a ser utilizado, em caso de resfriado ou de gripe, quando tenho de sair de casa. O álcool gel permanece como item incontornável nas compras de supermercado.
Passei por esse período incólume, sem, inclusive, ter sido sequer acometido por um simples resfriado. Credito o fato aos cuidados tomados, dentre eles, a ausência de apertos de mãos e abraços excessivos, de nossa natureza tão brasileira, que se expressa com muito entusiasmo, na relação entre amigos ou apenas conhecidos. Acredito também que não estava na relação divina, para a visita periódica que todos devemos fazer ao nosso verdadeiro lar, o espiritual.
Os encontros sabáticos na Livraria do Luiz foram duramente afetados, afastando-me dos amigos e das conversas boas sobre todas as coisas, borboleteantes, como devem ser as conversas descontraídas e prazerosas. Como tudo tem um lado positivo, também as companhias indesejáveis foram afastadas. Do mesmo modo, pude me resguardar da polarização em que o país se vê mergulhado, sem que ninguém abra mão de suas certezas, com muitos contribuindo para que ela continue, e, sobretudo, com a permanência de acusações mútuas e, muitas vezes, infundadas, de “discurso de ódio”. Serviu também para que eu desse um basta, definitivo, na televisão aberta. Nada de jornais televisivos, sobretudo.
Muitos amigos, que encontro, fortuitamente, em outros eventos, me cobram amigavelmente a presença aos sábados, no Luiz, principalmente, para a retomada do encontro sabático. Tenho me desviado do assunto, tenho fabricado desculpas. Na realidade, a pandemia teve também o condão de me fazer gostar, ainda mais, de estar em casa, no sossego, lendo, escrevendo, vendo filmes, séries, cozinhando ou mesmo sem fazer nada. Uma boa e prazerosa maneira de não ter de enfrentar o trânsito de João Pessoa, que já começa a se tornar insuportável, para alguém como eu, nascido e criado aqui, acostumado à paz dos poucos carros da minha infância e adolescência.
Quando mergulho nessa minha decisão, percebo que, na verdade, eu não gostaria de encontrar mais certas figuras, cujo discurso cediço, cuja postura enfatuada e, sobretudo, cujas energias ruins me fazem muito mal. Não é suficiente eu me vestir de branco, como o faz o meu sempre sorridente amigo e em paz com a vida Humberto Almeida. Eu precisaria de uma blindagem. Talvez de um escudo ou campo magnético, como o que protege a Terra contra as tempestades solares.
Quando pensei em escrever sobre isto, veio-me à mente um personagem de Victor Hugo, do seu último romance, Noventa e três (Quatrevingt-treize), abordando o episódio da guerra da Vendeia, concomitante ao período de Terror (1793-1795), da Revolução Francesa. Há nesse romance um personagem interessante, cujo nome é Tellmarch, mas que é conhecido na Vendeia bretã por Caimand, termo que designa mendigo, no jargão da região. Tellmarch também denominado le Vieux, o Velho, era para a população local “um filósofo”, palavra que entre os campesinos significa uma mistura de médico, cirurgião e feiticeiro, como diz Hugo, sem excluir a possibilidade de louco ou de pessoa pouco confiável, sempre com ares contemplativos, despertando a suspeita das gentes. Tellmarch ou Caimand ou o Velho, era uma pessoa inquietante, que se abrigava num buraco, sob a raiz de uma árvore; pessoa apenas tolerável, suspeito aos azuis, que o tomavam por um campesino contrarrevolucionário da Vendeia; suspeito a estes, por o acharem um feiticeiro. Hugo, então, bate o martelo, de modo a situar bem a situação do personagem:
“Tellmarch era mais que um homem isolado, era um homem evitado.”
A que vem esta passagem por Hugo? Utilizo-a para me definir melhor atualmente. Homem isolado, eu não sou. Tenho muitas e boas relações, embora tenha a consciência de que há pessoas que me evitam. Não me considero tampouco e tout court uma pessoa evitável. Prefiro assumir que, de uns tempos para cá, eu sou, sobretudo, evitante. Sempre que me for possível evitar alguns seres, por um lado escassos de luz; por outro, ávidos de sugar a pouca luz de quem tem, eu evitarei. Se não for possível, encontrando-me numa incontornável rota de colisão, cumprimento, troco algumas rápidas palavras, fazendo figa com os dedos, e saio rápido de cena.
Enquanto não tiver a proteção devida contra determinadas pessoas, assumirei a minha personalidade de evitante. Quando alguém me vir com uma atmosfera sobre a cabeça ou sob os pés das cores das auroras boreal e austral, pode estar certo de que eu consegui o meu campo magnético contra os fátuos de energia ruim.
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