Como se explica uma pessoa fadada a nascer em uma família sem as mínimas condições de dignidade humana, faltando-lhe tudo até o básico para sua sobrevivência? Ela teve opção de escolher? O destino é inquestionável. Assim como Deus situa-se no imponderável. Observamos a pirâmide da estratificação social que atinge no topo aqueles poucos que vivem nababescamente com luxo, pompa e ostentação, sem saber nem quanto gasta ou quanto tem; existem outros que têm tudo o que querem confortavelmente; há aqueles de renda que supre a demanda e tem folga para o lazer, viajar etc. Outra camada satisfaz as necessidades básicas e lhe sobra alguma coisa para poder usufruir de almoçar em restaurante e realizar um passeio etc. São os remediados. Ainda há os que ganham o suficiente para cobrir as suas despesas mensais e nada mais. O segmento seguinte dispõe o suficiente para fazer uma ou duas refeições por dia; e o restante da população, que é a maioria, que nada têm, sustenta-se de biscate; vende pipoca, dindim, picolé, amendoim etc. Constituem-se em pobres ou miseráveis. Kowarick (1985) no seu livro A marginalidade na América Latina, explica muito bem este fenômeno da marginalidade e da excelência social, cujo propósito não é discutir nesse momento devido à complexidade da problemática.
Esta semana conversei com a coordenadora do projeto Bolshoi no Estado da Paraíba, Fernanda Albuquerque, mantido pela Prefeitura do Município de João Pessoa. O projeto tem sede na cidade de Joinville SC, desde 15 de março de 2000. Única unidade fora da Rússia, a tradicional escola de balé possui grandeza de extensão social, cultural e com abrangência educacional que alcança aos seus objetivos e atividades.
Os professores de Joinville manifestaram o desejo de conhecer a realidade dos 12 alunos da Paraíba, que atualmente estão realizando o curso. Chegaram no final de abril, passaram aqui uma semana. Acompanhando a coordenadora do projeto estabeleceram um cronograma de quatro visitas por dia, durante três dias.
A família de José Francisco reside no bairro de Cruz das Armas numa casinha pequena, muito simples; a mãe mora numa vila, mas os docentes foram recebidos pela avó, que se mostrou muito agradecida por considerar que seu neto tomara outro rumo na vida, recebendo a oportunidade que outras crianças ali do local não têm. Ilustrou como exemplo crianças que iam para a escola e ao voltar ficavam na rua sem ter o que fazer e sem perspectivas.
As palavras, tanto da avó, quanto da genitora, foram de gratidão e reconhecimento, pois tinham certeza que Francisco teria outra sorte daqueles que eram seus colegas de bairro. Na ocasião as docentes passavam para a família um vídeo da criança lá na Escola Bolshoi. Transmitiam a mensagem em momento de muita emoção. Outra casa foi a de Fred, localizada no bairro do Baleado, uma morada muito humilde. Na verdade, trata-se de um prédio de uma antiga escola abandonada ocupada por pessoas que subdividiram os compartimentos. O que era sala de aula virou casa e a de Fred foi montada no antigo refeitório, dividido em duas moradias. O que chama atenção é a forma como os moradores se agrupam e se dividem estabelecendo limites territoriais. Toda casa na porta de entrada tem um degrau alto que é uma barreira para não entrar água. Quando chove muito fica tudo alagado. E a água sobe mais de 80cm. Porém, estão animados com as promessas do prefeito que está saneando as ruas dizendo que no próximo inverno isto não mais irá acontecer. Todos os cômodos são apertados. Em seguida, a comissão dirigiu-se ao Bairro dos Funcionários, num condomínio bem singelo de pequeno espaço, mas bem arrumadinho. Os pais do menino receberam a equipe com muita emoção pincipalmente ao ver o vídeo do filho, conscientes de que ele está tendo o melhor e dizem ficar triste por causa da saudade, mas que ela é consolada por terem certeza que o filho terá uma formação distinta. Dali foram para outra morada no bairro do Geisel. A residência resumia-se a pequeno quarto de um loteamento. Por se constituir num contato inusitado, todos os vizinhos, curiosos, aproximam-se, querem participar. Aí moram a mãe e a irmã. Dão importância e valorizam aquele momento como especial.
A vez agora é de Hugo, no Bairro do Grotão, considerado inseguro pela população local por ter muita violência. “A casa parecia um labirinto, toda dividida para uma família inteira, em torno de 9 pessoas. Havia um puxadinho no primeiro andar onde ficava o quarto de Hugo. A receptividade foi das melhores pois tinham orgulho de ver a equipe do Bolshoi. A vizinhança compareceu para acolhê-los etc. Sabiam fazer pão e fizeram assim um pão caseiro para servir, como forma de gratidão, aos professores e a equipe da secretaria para que todos juntos se regozijassem pelo que estava ocorrendo. O sentimento predominante era de agradecimento por aquela chance concedida ao seu filho em estudar na filial do Bolshoi, em Joinville, uma das escolas mais famosas do mundo, recebendo outra educação e se não fosse esse projeto a sua sina seria outra.
O próximo encontro foi na casa de Milton. Lá residiam sua avó e sua mãe, que ao verem a equipe de professores colocaram palavras de carinho dizendo: “somos muito gratas porque se ele estivesse aqui a sorte dele não era a mesma: era outra, não seria diferente de muitos dos que aqui permanecem. Nós não tínhamos como disciplinar. ” Basta dizer, que a comunidade é controlada por estranhos. Mesmo com as condições precárias elas procuram agradar. Fizeram um bolo de laranja, numa demonstração de amizade para com os docentes, mesmo sendo dito pela coordenação que não fizessem lanche, elas ofereciam e a equipe não tinha como recusar. Em seguir, foram à casa dos gêmeos Gabriel e Rafael, cuja mãe faz quentinhas para sobreviver. A avó deles esteve presente e muito emocionada expressou seu contentamento em poder falar com os professores do Bolshoi e pessoalmente agradecer o que estava sendo proporcionado aos seus netos, isto num ambiente de muita emoção. A mãe expressava a felicidade de poder através do projeto conseguir realizar o sonho de seus filhos. Outra casa visitada foi a de Pedro, fica no Gervásio Maia onde vivem sua mãe com a companheira e mais duas filhas. A mãe relatou: “A minha família é contra a ida de Pedro para esse projeto porque considera que balé é coisa para mulher”. Isto por falta de informações e não terem o alcance com a grandeza que tem esse projeto. Não têm o conhecimento do que é a arte, então ela fala; enquanto for viva e o filho dela quiser ela estará apoiando e realizando o sonho dele. Vou contra tudo e contra todos, mesmo que esteja brigando com toda família eu não abrirei mão disso. “
No terreiro dia a comitiva viu de perto o local onde Paulo mora, no Timbó de Cima, logo após os Bancários. Trata-se de uma pequena granja que fora fechada para serem construídos uns apartamentos. Pessoas humildes, mas muito educadas receberam os professores com bastante receptividade; serviram um bolo de cenoura com um suco de cajá. Nessa casa são dois filhos, Thiago e a irmã. Quando o filho manifestou o desejo de participar do projeto o pai não se opôs e apoiou a realização do seu sonho. Hoje, manifesta gratidão: “que se não fosse o apoio do Prefeito Cicero Lucena e da Secretaria da Educação, através da professora América, jamais ele sozinho teria as condições”. Num apartamento no Bessa, onde mora o Jairo, encontraram seu irmão com a irmã e a mãe. O pai encontra-se recolhido está preso e a mãe, com uma medida protetiva, trabalha em um restaurante durante a noite. Com este emprego garante o sustento precário da família. Para estar presente ao encontro com os professores conseguiu que seu patrão lhe doasse uma quentinha para oferecer aos membros da comitiva. A última visita foi por demais chocante pela situação em que se encontrava a mãe do Manuel. Habita uma comunidade na periferia de João Pessoa.
É triste a situação em que se encontra com 6 filhos; um estuda no Bolshoi, outros dois saíram de casa. O pai é apenado. A mãe ex-detenta afastou-se da família por quatro anos. Os parentes desistiram dela e de seus filhos. Durante esse tempo todo recebeu apenas duas visitas. Manuel tinha dois anos e até aos 6 ficou sem ela. Permaneceu ao Deus dará, jogado à própria sorte, aprendendo a viver e a se defender do mundo, no meio da rua. A casa é um quarto de quatro metros quadrado e, construída em cima de um esgoto que exala mal cheiro. Disse ela que comprou material de limpeza com a venda de umas latas que catou. Foi feito uma limpeza para receber as professoras, mas mesmo assim o odor que exalava era fétido, as baratas ficavam à vista. Ela apresenta vários problemas de saúde; depressão, catarata e desvio na coluna. O seu telefone não parava de tocar, ela dizendo que eram os filhos no presídio, elas mandavam que atendesse, mas recusou dizendo que depois eles ligavam. “Eles sabiam que eu ia receber a comissão de professores de Joinville”. Vive miseravelmente do bolsa família e só come quando recebe doações. Ao sair, o grupo ficou estarrecido com a condição sub-humana em que aquela senhora sobrevive.
O quadro aqui descortinado retrata uma realidade cruel vivenciada por essas famílias, que, na sua maioria, vivem ao nível da pobreza extrema e alguns na miserabilidade. As professoras do Bolshoi em reunião avaliativa enfatizaram que foi proveitoso o conhecimento sobre as famílias dos alunos constatando “ in loco” a problemática existente, foi de muita importância o que ajudará a compreender e dar respostas aos comportamentos das crianças, que, em princípio, eram considerados estranhos e extemporâneos. Sem o conhecimento dessa realidade que vivenciaram, jamais mudariam as atitudes psicopedagógicos necessárias para com elas. Esses contatos certamente vão mudar os procedimentos metodológicos a serem adotados e permitir que se crie mais intimidade entre o docente e o aluno.
A Escola do Teatro Bolshoi no Brasil competa 23 anos. A primeira turma na Paraíba surgiu em 2003. Hoje, há bailarinos paraibanos espalhados no mundo, fazendo parte de grandes companhias de dança em Londres, Paris, no Circo de S’oleil etc. Ela é referência do balé mundial. Tudo iniciou na primeira gestão do atual prefeito, sendo retomado em 2021, quando foi revitalizado o projeto que vem proporcionando ensino de excelencia de balé a carentes brasileiras, oportunizando a esses jovens realizarem seus sonhos e concretizarem seus ideais. A prefeitura tem um gasto por aluno de R$3.000 reais sendo, total de R$36.000,00 reais/mês. Além de fornecer todo apoio logístico mantém uma casa – abrigo tendo duas funcionárias como mães-sociais que cuidam deles no que diz respeito a alimentação, vestuário e dormida, além de proporcionar o lazer. Duas vezes por ano vêm ver seus familiares, por conta do município.
No corrente ano, a seleção para ingressar na Escola do Teatro Bolshoi de Joinville /Santa Catarina, ocorreu no período de 15 a 20 de maio. Crianças das 100 escolas municipais, com idade de 9 a 11 anos, participaram do processo seletivo. Equipe da DEFISE (Divisão de Educação Física, Saúde e Esporte Escolar) percorreu todas as escolas municipais de João Pessoa em busca de talentos. São 16 profissionais avaliadores que receberam treinamento específico dos docentes do Bolshoi. A seleção constitui de três etapas: Na 1ª fase, foram avaliadas 1649 crianças; 2ª fase: 703 crianças classificadas; 3ª fase, nesta fase vêm três representantes do Bolshoi e fazem a seleção das 20 crianças que irão concorrer à seleção nacional em outubro em Joinville neste ano 2023. Atualmente estão vindo também crianças de outros países. Após esse procedimento, cada criança recebe um kit de viagem com todo o material: roupa, calçado etc. É reservado um hotel para que essas 20 crianças possam cumprir a programação, incluindo também lazer etc. Ao ingressarem na Escola terão assistência integral necessária: médica, com as diversas especialidades pediátricas; apoio psicopedagógico, psicológico e nutricional, recebendo um acompanhamento direto tanto os discentes do ensino regular quanto os vinculados à própria Escola Bolshoi.
Ressalte-se, diante de tudo que foi visto, a dimensão social de um projeto que prevê a inclusão de crianças pobres no setor artístico. Através dele constrói-se a cidadania resgatando a dívida que o Estado tem para com a população carente. É pena que só atinja a poucos num universo tão necessitado e esperançoso de dias melhores, com uma demanda inatingível. Até certo ponto é compreensível mesmo porque a excelência não pode atingir a todos. Menos mal, pois embora poucos possam usufruir desses benefícios esses meninos são encaminhados a alcançar um futuro promissor. Com certeza terão outro destino. É notório o reconhecimento externado pelas famílias e a confiança que depositam na equipe gestora. Constatam o esforço da coordenadora e administradora do Projeto na Paraíba, professora Fernanda Albuquerque e a Secretária Municipal de Educação e Cultura de João Pessoa Professora América de Castro, para que tudo se desenvolva conforme as regras estabelecidas. Parabéns ao Prefeito de João Pessoa! Que se sensibilizou para dar atenção a uma obra como esta de interferência concreta sobre a realidade das pessoas e de suas vidas.
Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP
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