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Ana Karla Lucena  é bacharela em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Servidora Pública no Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba. Mãe. Mulher. Observadora da vida.

Onde Deus possa me ouvir

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publicado em 24/07/2023 ás 07h00
atualizado em 23/07/2023 ás 19h02

Ele entrou num bar e procurou sentar-se junto ao balcão. Não havia por que sentar-se a uma mesa, já que estaria sozinho. Além disso, estaria mais perto da garçonete, que logo viria atender ao seu pedido. Não consigo imaginar a música que tocava ao fundo. Rock’n roll talvez não fosse. Não parecia ser a praia dele. Bom, mas nunca se sabe. Enfim, ele começou a fazer aquilo a que se propôs entrando naquele lugar. Ele bebeu. Ele bebeu. Ele bebeu.

Não sei bem como era o comportamento dele quando isso acontecia, mas algo fez com que a garçonete, consternada e já preocupada, o interpelasse, talvez advertindo sobre beber um pouco de água ou perguntando se poderia ajudá-lo em mais alguma coisa. Ele, então, respondeu: “sabe o que eu queria agora, meu bem? Sair, chegar lá fora e encontrar alguém. Que não me dissesse nada, não me perguntasse nada também. Que me oferecesse um colo, um ombro. Onde eu desaguasse todo desengano. Mas a vida anda louca, as pessoas andam tristes, meus amigos são amigos de ninguém…” Ele não queria estar sozinho, tendo que abrir o coração a uma pessoa que estava ali apenas para fazer o seu trabalho, que seria o de trazer aquilo que o faria esquecer. Deve ter convidado algum amigo, de quem recebeu uma desculpa qualquer.

Talvez ele tenha percebido a rudeza da resposta ou tenha visto no olhar de sua interlocutora que ela realmente queria ajudar. Ela sabia que algo não estava bem, porque ao respondê-la, dos olhos daquele homem totalmente desconhecido, mas visivelmente carente de atenção, caiu uma lágrima. Ele, então, quis explicar  por quê tão arredia havia sido sua resposta. Então continuou: “sabe o que eu queria agora, meu amor? Morar no interior do meu interior. Pra entender por que se agridem, se empurram pro abismo, se debatem, se combatem, sem saber…” Não compreendo bem, mas, talvez ele estivesse fazendo uma alusão ao modo como as pessoas do seu ramo de trabalho digladiavam-se por um lugar ao sol. E tudo que ele queria era expor a sua alma, tão rica de poesia. Quem sabe fosse melhor deixá-las no interior do seu interior.

Ao sair de casa para trabalhar,  a moça que o atenderia naquela noite não sabia que ouviria de alguém um desabafo tão profundo e cheio de tanta dor. Ela também não sabia que tais palavras, mais tarde, seriam uma das mais belas músicas já tocadas e reproduzidas por tantos artistas.

Percebendo que a moça não traria uma resposta ou um consolo à sua desilusão, ele, então, fez um último pedido: “meu amor, deixa eu chorar até cansar, me leve pra qualquer lugar aonde Deus possa me ouvir! Minha dor, eu não consigo compreender, eu quero algo pra beber, me deixe aqui, pode sair!” Talvez ele não acreditasse que Deus o pudesse ouvir naquele lugar. Esqueceu-se de que, se quisesse falar com Deus, bastava “folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos anseios…” onde estivesse.

Mais tarde, ao finalmente chegar em casa, ele fez uma melodia à qual uniu o monólogo feito mais cedo. Não lhe pareceu bem aos ouvidos. Não seria algo vendível. As pessoas não se sentiriam felizes ao ouvir. Pelo contrário, faria com que lembrassem da sua própria dor e também chorariam. Engavetou a canção, que só seria adotada por Gal Costa, no ano de 2002. Estourando como uma das maiores e mais belas canções já ouvidas.

Bom, esse foi o relato da minha imaginação, ao tentar entender, como Vander Lee, um dos maiores poetas de todos os tempos, compôs a canção “Onde Deus possa me ouvir”. Não sei se chega perto da realidade, mas, ainda tenho vontade de morar no interior do meu interior todas as vezes que a ouço.

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