João Pessoa, 26 de julho de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
“Sábado é um ótimo dia para a gente fazer uma porção de coisas maravilhosas. A melhor delas é ficar em casa”, diz o personagem de Antônio Torres, em Um cão uivando para a lua, seu primeiro romance, de 1972.
Certamente!
De minha parte, considero o sábado o dia mágico por excelência, a “rosa da semana”, como diz Clarice Lispector. Dia do repouso e do devaneio. Dia fundamental para a organização do pensamento e o cultivo da emoção. Dia do prazer e da liberdade. Do ócio criativo e do reencontro consigo mesmo.
Ficar em casa é bom. Bom para rever seus recantos interiores, arrumar a mobília da alma e dar sossego ao coração ofegante. Dia de abrir gavetas e consertar velhos poemas, de reler cartas antigas e de escutar aquelas mesmas canções que nos acompanham a vida inteira.
A casa é tão vasta como o mundo!
A casa é o meu mundo, minha geografia física e meu espaço poético, naquilo que ele contém de rotina e aventura. Minha história se mistura com os compartimentos de minha casa. Em cada ambiente de sua estrutura, uma lembrança me devolve vivências do passado, e tudo que a compõe, material e simbolicamente, como que constitui o idioma do abrigo, do aconchego e do espanto.
No jardim, por exemplo, vejo as flores crescendo e exibindo o mistério das cores que cintilam sob a luz do sol nesses dias tórridos de verão. As orquídeas se entrelaçam, aéreas, refletindo a singularidade de sua indefinível beleza. Nada como a alegria dos jasmins e seus odores matinais. O cacto, na sua sobranceira solidão, dá-me lições de perfeição e geometria.
O terraço se abre para os chamados da vida e dele se vê a simetria do horizonte, com seus versos feitos de vento e distância. A sala pede a íntima conversa com o amigo querido e preserva, como um insólito museu, amostras de pequeninas coleções de objetos inúteis. Cada quarto guarda a fazenda dos sonhos, o latifúndio dos segredos, a rota incontornável de Eros trilhada entre espelhos, cabides, lençóis e aromas.
Mas o melhor da casa reside no tumulto silencioso da biblioteca. É lá, por entre as estantes, que a vida pulsa por inteiro. Vejo a biblioteca como um universo dentro do universo, uma cartografia plural, um disciplinado labirinto, o paraíso possível.
Vejo também que, na biblioteca, tenho o registro do tempo, com seus enigmas indecifráveis; o passar dos dias e das horas num constante e pertinente diálogo com o imaginário e a fantasia; a voz silenciosa e acessível de tantos que me precederam no amor incondicional pelas palavras.
Ali, em meio à multiplicidade dos livros, caminho como se estivesse passeando pelos mais diversos países à procura de seus hábitos e paisagens, de seus roteiros e monumentos, de sua gente e de sua história.
Porque hoje é sábado, como diria o poeta, devo arrumar os livros nessa ou naquela estante. Repor, por exemplo, o meu Dostoiévski, que estava em cima da mesa, ao lado de seus pares: Tolstói, Tchekhov e Turgueniev, compondo, assim, o sagrado quarteto do realismo russo.
Porque hoje é sábado, Machado me espia ironicamente de sua prateleira, indiferente à poeira que cobre seus volumes, assim como Eça de Queiroz enfileira seus romances acompanhado de sua rica e diversificada fortuna crítica. Pessimismo, ceticismo, sarcasmo, farpas, estilo e sabedoria mesclados na junção desta dupla genial.
De outra parte, ficam os poetas (paraibanos, nordestinos, brasileiros, portugueses e estrangeiros), em seus redutos particulares determinados pelo estranho, porém eficaz, critério da geografia e da língua. Aqui, há de um tudo. Maiores e menores, clássicos e modernos, apolíneos e dionisíacos, mágico-delirantes e logico-matemáticos, cosmopolitas e provincianos, vanguardistas e tradicionais, racionais e inspirados, os de sábado e os de outros dias da semana etc. etc.
Enfim, o sábado é dia ideal para ficar em casa. Principalmente, se em casa se tem o tesouro de uma biblioteca.
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OPINIÃO - 22/11/2024