João Pessoa, 04 de outubro de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
(Aos que amam a Comarca das Pedras)
O homem deve ter um chão. Deve ter uma terra. Não só os sete palmos que, de natural, lhe destinam. Deve ter uma origem. Um torrão natal. Uma cidade. Mais que uma cidade, uma geografia e uma história. E muitos mitos e muitas paixões.
A história é uma ciência dos fatos, de sua lógica secreta, do previsível, mas também do indeterminado. A geografia, por sua vez, apenas sabe dos sonhos irrealizados e dos lugares que amamos. Sejam reais, sejam imaginários. Mito e paixão são categorias do poético, e por serem categorias do poético, dispensam atributos e nomenclaturas. Essência e existência fundidas no tempo e na eternidade.
Quem não tem um sítio para a ele voltar vez em quando é pobre de Jó. Acho que tenho um. Porém não acho que sou rico. Rico é quem sabe das coisas, quem viaja por vales e campinas, desfiladeiros e abismos; quem não se apega à epiderme dos fenômenos, quem guarda as pérolas de Deus dentro dos esconderijos da linguagem.
Meu sítio não anda comigo como o sítio de Gonzaga Rodrigues anda com ele, na devassa dos canaviais e nos canaviais da memória. Meu sítio me habita, dentro de mim, como a molécula, como a glândula pineal, como a mônada sagrada e seu incógnito panteísmo. Volto a ele, aqui e ali, em lua nova ou lua cheia. Ele me é berço e dádiva, graça e transfiguração.
Ainda ontem acariciei o corpo quente de sua feira livre. Comprei jerimum de leite, banana prata, abacaxi, uvas de Natuba, e uma bolsa de couro de bode para carregar meus pertences e apetrechos mais íntimos. Homem também leva certas coisas na bolsa.
Uma faca peixeira de oito polegadas, para cortar o mal pelo raiz; uma tesoura de inox, para tosar a barbicha e aparar o bigode; um espelho redondo, para me acompanhar nos estragos do tempo; dois pentes, um fino e um grosso: gosto de pentear os cabelos; um vidrinho de perfume com cheiro de alfazema, dois livros de bolso: um, de poemas; outro, de aforismos sensuais. Ah! Antes que me esqueça: uma latinha de Vick VapoRub e um fio dental, coisitas que considero as melhores invenções do mundo. Tudo misturado com o odor indecifrável da minha cidade.
E por falar em minha cidade, como a minha cidade está arrumada!! Limpa, aconchegante, merecedora do sol que sempre a banhou, com sua “verdade vazia e perfeita”. Com suas noites frias que a cobrem de solidão e ternura!
O mercado público renasce das cinzas nos azuis e brancos de sua história, cartão postal de minha meninice. O açude se pavimenta, sua calçada é mirante para a volúpia das horas quando a cidade adormece. A praça de pedra me convida ao prazer da contemplação. A cidade como que fala palavras do vento que vem de longe e se aninha nas vísceras de suas pedras ancestrais. As pedras são seus altares, silenciosas e prontas para a missa das lembranças e do esquecimento.
Não conheço, nem sei se devo conhecer, os donos de minha cidade. E minha cidade tem dono? Nada tem dono, muito menos o lugar que inventamos na cartografia da saudade. Não conheço, nem sei se devo conhecer, o prefeito, o juiz, o promotor, o padre, o delegado, o fazendeiro, o comerciante e outras entidades que mexem com a gosma do poder. Detesto o poder. Em mim sempre brilhou uma pequenina centelha de irrequieto anarquismo. No entanto, não devo mentir nem omitir: meus olhos veem e apreciam. Atestam que as coisas podem mudar. Tudo não é feito de mudanças, como diz o poeta?
Duma árvore e de um olho d` água brota um povoado. O povoado se faz vila, e a paisagem muda com os pastos e com os passos dos semoventes. Cavalos, bois, touros e novilhas a regar o destino dos dias, o criatório como vocação, a agricultura como a maternidade.
E a verdade é que a minha cidade cresceu. Que a minha cidade mudou… Estende seus músculos pelos carrascais e caatingas e alarga seus espaços para o conforto das serras que a cercam e a dominam no reino da beleza. A minha cidade está clara, ordenada, simétrica, bem medida nas ruas abertas para o futuro. A minha cidade está bem cuidada, presente vivo a explodir na retina.
Já era tempo!
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OPINIÃO - 22/11/2024