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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

“É uma motoboya, mamãe!”

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publicado em 23/10/2023 ás 12h59

Li, há alguns dias, na imprensa on-line, que a Academia Brasileira de Letras decidiu não utilizar a linguagem neutra. Já estava no tempo de a nossa maior instituição tomar uma decisão clara a respeito do assunto. Nada contra quem utiliza a pretensa linguagem neutra. Cada um faz uso da língua como deseja, ninguém irá ser preso por causa disso. O que não pode acontecer é decidir-se unilateralmente que o uso será obrigatório, à revelia dos donos da língua, os usuários. E os motivos são vários.

Comecemos dizendo que a língua é imune a qualquer legislação por decreto. Língua é uso e a mudança pretendida não abrange todas as pessoas. A questão é que não se trata de fazer voltar o neutro, já previsto no sistema da língua. Na realidade, o que se quer é uma neutralização da língua. O neutro apenas se encontra em desuso, desde as modificações ocorridas no galego-português, atestadas e ratificadas pelo português, quando da gradativa separação dos dois idiomas, a partir do século XIII. O fato de o neutro ter caído em desuso, não significa que ele não possa ser reativado. Mesmo em desuso, ele permanece no sistema da língua. Quem vai decidir sobre o seu retorno ou não são os usuários.

Este é o principal argumento para a decisão tomada pela Academia Brasileira de Letras: o uso atual está restrito a nichos, que não conseguem impactar uma massa significante dos falantes da Língua Portuguesa, que, esclareça-se, não se restringem ao Brasil. Em consequência, como o uso não vai ser adotado por quem tem a obrigação da preservação do idioma, professores não poderão exigi-lo de seus alunos. E, acrescentaria, também não podem ensinar, alegando que as línguas se modificam.

O argumento de que as línguas se modificam não se aplica à questão. As línguas se modificam numa velocidade independente de nossa vontade, sempre vinculada à quantidade dos falantes que a utilizam. Esta velocidade é maior quando se trata de aquisição lexical. Quando se trata de mudança na sua estrutura, há uma certa impermeabilidade, no que concerne a mudanças, principalmente, as ditadas por pequenos grupos ou por nichos, como bem o disse o presidente da Academia Brasileira de Letras. Para o neutro não ser utilizado por algumas línguas latinas, foi necessário um contato do latim com outros falares, longe do centro do império romano, o que gerou uma modificação ditada pelas necessidades de um grupo majoritário de falantes, cujo uso se afastava, cada vez mais da língua imposta pelo dominador, em direção a uma língua vulgar (no sentido de comum), que dela se derivou. Para que se entenda melhor a minha argumentação, digo que é mais fácil entrar para a língua “motoboya” do que “todes“.

Aqui vai o que respalda a argumentação do parágrafo anterior e justifica o título deste artigo Uma menininha foi, com sua mãe, receber a comida entregue em sua casa. Para espanto dela, não era um entregador, um motoboy, mas uma entregadora. Prontamente, ela disse à mãe: “É uma motoboya, mamãe!”. Imagine uma criança de 3 anos que nunca foi à escola, nunca estudou formalmente a língua portuguesa, mas é uma falante natural da língua, com a sua estrutura básica internalizada, e que vai aprendendo por aquisição a utilizar os mecanismos que a língua disponibilizou. Se ela vivencia, no dia a dia, a oposição gato/gata; tio/tia; sobrinho/sobrinha, ela automática e racionalmente faz uso da lógica interna do sistema e dispara um “motoboya”, como oposição a “motoboy”, termo que já se encontra dicionarizado, sendo um passo a mais para que o seu par opositor venha a existir, ainda que o dicionário diga que o feminino é “motogirl”. E o dicionário, perdoem-me, está errado. O feminino, pelo sistema da língua portuguesa, quando permite a existência de um par opositor é “motoboya” ou “motoboia”, forma que tenderia à simplificação, o mesmo valendo para motoboy > motoboi. Por que o dicionário está errado? Pelas mesmas razões que utilizamos para bode e cabra. Bode é uma palavra masculina, cabra é palavra feminina, mas não o feminino de bode – que poderia ser boda. Entre estas palavras há uma relação semântica envolvendo o sexo dos animais, mas as palavras têm radicais diferente, não havendo, portanto, uma flexão de gênero. No caso de motoboy/motogirl, o que existe é uma derivação e, insisto, quando se trata de gênero, o processo é flexional, não derivacional. Ponto para a garotinha, que de uma só lapada, mostrando que existe uma lógica na língua, desmonta a afirmação do dicionário e os gramatiqueiros de plantão.

Sem se dar conta, o sistema linguístico de que somos dotados, para falar qualquer língua, atua na garotinha e nos diz que motoboya/motoboia é aquisição lexical. Mesmo que sua procedência seja inglesa, a flexão permitida a inclui no sistema da língua portuguesa. No caso do pretenso neutro, a mudança afeta a estrutura da língua, por não estar prevista pelo sistema. Enquanto na nossa língua há um paradigma de gênero para incluir motoboia, o mesmo não existe, quando se trata, por exemplo, de “todes“, “todxs” e “tod@s“, tendo em vista que tais falsas desinências de gênero neutro (-e, -x, -@) não estão previstas no sistema da língua. Aliás, ouso prever que as duas últimas nunca serão adotadas, ao menos no português. Adotar uma delas – para haver uma lógica, as três não podem ser adotadas, pois a língua não trabalha com desordem –, constituiria uma mudança na estrutura da língua, que tem como padrão a ser seguido e previsto, desde o latim, a desinência de gênero -a, quando existe a oposição com o masculino, sendo o masculino, em português, como sabemos, não marcado. Em gato, o -o é vogal temática, como era no latim, em que -a e -o aglutinavam a informação desinencial de vogais temáticas da primeira e da segunda declinação, com o gênero da maioria absoluta de palavras femininas e masculinas dessas respectivas declinações. Com relação ao neutro, o latim previa as desinências -u (verbum), -us (corpus), -en (flumen), -e (facile), entre outras, para o singular, e -a (verba, corpora, flumina, facilia), para o plural, não havendo plural em -s, para o acusativo neutro, caso que gera as palavras para a língua portuguesa.

Faço apenas uma ressalva, no que diz respeito a ser o MEC, como afirmou o presidente da ABL, quem decide sobre questões de língua. Quem decide e sempre decidirá é a instituição que entende da língua e que, tradicionalmente, é a sua guardiã e das suas normas: a Academia Brasileira de Letras. Não será uma instituição burocrática como o MEC, que terá qualquer competência para descrever o que é um processo linguístico.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB