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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Antiliteratura e periferia

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publicado em 01/11/2023 às 07h00
atualizado em 31/10/2023 às 14h59

 

Os primeiros textos que li de Roberto Menezes foi no jornal Contraponto. Textos meio híbridos, oscilando entre o artigo, com suas digressões informativas, e a crônica, na possibilidade do teor literário. A nota unitária se deixava entrever, no entanto, na configuração do olhar realista diante dos fatos, personas e ocorrências do cotidiano.

O estilo direto, de tom mais para o baixo relevo e indiferente ao timbre do elevado, portanto, preciso, coloquial, irônico, sarcástico, trazia-me a sensação de que estava face a face com um escritor alheio ao brilho ocasional das falsas retóricas.

Se tal se dava com o texto jornalístico em âmbito cultural, o mesmo ocorre e com a mesma pegada insistente, no terreno mais movediço da prosa ficcional. Estou tateando as páginas de sua mais recente coletânea de contos, Meio estreito (Nova Minas-MG: Caos & Letras, 2021), tocado pelo desafio de seus pequenos enredos, enraizados no pavor e no calor das anônimas tragédias do dia a dia.

À maneira de um Dalton Trevisan, de um João Antônio, de um Caio Fernando Abreu, de um certo Luiz Vilela ou mesmo das vozes mais imediatas de um Marcelino Freire ou de um Marcelo Mirizola, Roberto Menezes não teme o enfrentamento da perplexidade trágica que parece mover a vida de seus personagens, perdidos e desamparados num tempo∕espaço “meio estreito”, ou, quem sabe, sob o fogo irrespirável das “situações-limite”.

As duas epígrafes, uma, do Sermão da montanha, e a outra, de Sutra da Gurilanda de Flores, especialmente esta (“A natureza das coisas não tem um lugar de repouso”), preenchem, a contento, a função indicial no plano semântico e temático. Pois, é exatamente o contexto do não repouso, do desconforto, do constrangimento, da dissipação, do lugar, ou do não lugar, para o qual se volta a atenção do narrador.

Diria, ainda, que Roberto Menezes, nesse livro e em outros, como, por exemplo, Despoemas (2011), Palavras que devoram lágrimas (ou a felicidade cangaceira) (2012) e Trago comigo as dores de todos os homens (2019), firma e reafirma o seu procedimento “antiliterário”, na medida em que investe em recursos inventivos pouco convencionais e indiferentes aos protocolos do cânone. Tanto no plano estilístico, inteiramente acomodado à fala sincopada e cortante de suas criaturas, quanto na técnica de composição,  especular e “hipermimética”, como diria Alfredo Bosi, num de seus ensaios de Literatura e resistência.

Sua geografia é a região periférica, os bairros pobres e distantes da grande cidade, o urbanismo anônimo ignorado pelas políticas públicas. Seus personagens são o homem-massa, as figuras anódinas, os seres decepados pelas dores do mundo, os que parecem existir num beco sem saída e à beira do abismo.

O primeiro conto como que antecipa a descida aos infernos, trazendo, quase em ato alegórico, a figura do condenado: “Um lugar no tempo. Um momento do espaço. Praça. Público. Forca. O condenado se aproxima. {…} O capataz desamarra as mãos. Desamarra os pés. O vento empurra o condenado. O condenado voa pela praça. Corpo no ar. O vento leva. O condenado sobe. Sobe. E some”.

Observe-se o poder eloquente da pontuação e das frases curtas, sintagmas isolados a cadenciar os passos da “tensão”, que ratifica, por sua vez, a “intensidade” e projeta a “significação”, para me valer das categorias teóricas de Julio Cortázar, sob as diretrizes do mestre Edgar Allan Poe.

A pequenina aventura de pai e filho, vendendo dindim na praia; o amor cíclico e desmedido de um casal incomum; um suicídio público no playtime; as inquietações de um pregador, e o delírio de um homem no hospital, entre outras, constituem as motivações que levam o autor a descrever toscos cenários, a narrar casos banais e espantosos, a refletir sobre a incontornável miséria da condição humana.

Digamos que cada história, em sua dimensão alegórica, faz a passagem do singular para o particular, e do particular para o universal, em que pese a perspectiva imediatista e quase transparente do jogo literário na captação da realidade. Roberto Menezes é desses escritores que não teme os riscos do erro, que não se submete ao glamour da norma culta e para o qual o avesso das coisas possui seu idioleto próprio e sua verdade incondicional.

De minha parte, não tenho medo dessa literatura que desdiz a literatura. Dessa literatura que se encrava nas vísceras do “brutalismo” temático e que, em seu hiper-realismo, sem intermediações retóricas e tradicionais, aposta na palavra coloquial, estilizando, em certo sentido, os cacoetes linguísticos da cultura de massa. Substância e forma se fundindo numa expressão rasteira, ao rés do chão, porém, atenta ao pathos, à paixão ou ao sacrifício que regem a peripécia do destino humano. Aqui, se o grotesco não permeia os véus do sublime, exige, não obstante, os imperativos de sua verdade vital.

Esse percurso, que não é fácil, sinto que Roberto Menezes vem fazendo dentro de suas perspectivas literárias, enriquecendo, assim, o mapa dos prosadores contemporâneos na Paraíba, ao lado, entre outros, de um João Matias de Oliveira, Rinaldo de Fernandes, Antônio Mariano, Astier Basílio, Everaldo Soares Júnior, Thiago Germano e José Rufino.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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