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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Registros literários

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publicado em 29/11/2023 ás 07h00
atualizado em 28/11/2023 ás 17h47

 

“No meio do caminho tinha uma pedra”, disse Carlos Drummond de Andrade num poema emblemático. Há uma pedra na travessia estética de Juca Pontes e de José Rufino, com o livro∕objeto, Itacoatiara (João Pessoa, PB:  MVC Editora Forma, 2022).

E essa pedra, que se assenta sintaticamente nas fotogravuras, distende-se, em amplos e intensos giros semânticos, pelas palavras dos poemas. A simetria entre fundo e substância, entre imagens gráficas e repertório verbal, entre tema e visualidade compõem, assim, um texto híbrido, marcado pelo mínimo, pelo rastro, pela mancha, a convocar, para o centro de sua polissêmica significação, a simbologia da pedra, o enigma do tempo, a eloquência do espaço, o imaginário das etnias, os poros acesos da história, as fábulas da escrita rupestre.

Há, na composição artística desse trabalho, a presença incontornável de um lirismo, diria, geométrico, precisamente pelo sentido rigoroso da medida, pela dinâmica dialógica entre símbolo e ícone, pela força do espaço e dos ingredientes tipográficos recortando o tecido dos textos.

A característica minimalista dos versos de Juca Pontes, versos∕vocábulos jogados no branco do papel, pedras silábicas e fonemáticas atentas ao sentido medular da paisagem, casam-se perfeitamente com as fotos∕grafia, de José Rufino, em seus movimentos sinuosos, por dentro ou por fora, daquilo que é verbo, adjetivo, substantivo ou outro traço categórico do sistema linguístico.

Aqui, a palavra não deve ser lida sem o entrelaçamento da imagem, e a imagem, por sua vez, nunca dispensa o apelo significante da palavra. Insisto: é uma poética do mínimo que rege esse empreendimento estético e que preside as pulsões motivacionais que o gera, quer no plano individual da expressão, quer na possibilidade de sua força histórica, antropológica e mítica.

A pedra é metáfora axial. A pedra evoca o passado, o presente e o futuro, na sua atemporalidade. A pedra é topografia, escrita, poema, como bem exemplifica o texto da página 53: “Livre ∕ fauna  ∕∕ flagra ∕ a aura  ∕∕  da pedra-poema”.

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Fez bem Gonzaga Rodrigues ao selecionar e reunir suas crônicas no livro Com os olhos no chão (João Pessoa: MVC∕Forma, 2022). E por que? Ora, porque Gonzaga Rodrigues, em seu contínuo cronicário, maturado em tantos anos de ofício, sabe, como poucos, fazer a passagem do traço jornalístico intrínseco ao gênero, na sua irredutível fugacidade, para a validade estética da dicção literária, que transborda das camadas do tempo, e sempre, para me valer das palavras de Jorge Luís Borges, “arde e perdura”.

Todos sabemos: é o cotidiano a matéria prima da crônica. Aquele cotidiano que envolve fatos, pessoas, coisas, situações, acontecimentos, impressões e passos e descompassos da rotina, com seus entretons da repetição e da diferença.

Gonzaga Rodrigues caminha à vontade por este mundo, tocando-o, sempre, com as espátulas de um verbo cuidadoso, de um estilo singular e de um olhar curioso, capaz de revelar certas cores imperceptíveis, só configuradas pela sensibilidade de um poeta. Exato. É isto mesmo o que quero dizer. Gonzaga Rodrigues é um poeta, e como poeta, sabe ver a eloquência de um detalhe, a fala muda das coisas, a idiossincrasia das criaturas, as elegias da paisagem, as brincadeiras da infância, a furtiva beleza de uma loura, os recantos líricos de sua cidade e tantos sortilégios temáticos que a sua escrita, simples e elegante, sóbria e refinada, percorre pelos brejos literários de sua criação.

Escrevendo acerca de Notas do meu lugar, livro de 1978, Antônio Barreto Neto diz as seguintes palavras que podem muito bem ser aplicadas a este volume: “Nessa antologia de suas crônicas de jornal, Gonzaga está presente, se não de corpo, em alma e sensibilidade, peregrinando ao encontro de seus fantasmas e vivências pela cidade que o comove e perturba no espetáculo de todos os dias. O livro é um painel sensível do cotidiano da cidade, com um pouco de cada um de nós, de nossos condicionamentos, e com os pequenos nadas que o enriquecem, e cuja secreta verdade o cronista sabe tornar translúcida”.

São virtualidades inegáveis do cronista. Eu ainda diria: sua crônica ultrapassa os remígios do tempo e os esconderijos do espaço. Tem gosto de mel, o vento do canavial, a cachaça de alambique e a santidade de bordel. Seus atavios são naturais como os crepúsculos de Alagoa Nova ou a neblina dos sítios que se cultivam dentro da gente.

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