João Pessoa, 01 de dezembro de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Da janela da cozinha da casa da minha irmã, meus olhos se esticavam para o açude; depois, para um horizonte alargado, bem longe. Então, eu voltava para mim mesmo, mas antes fitava duas latas pequeninas, cheias de terra, duas flores miudinhas me olhando, como se eu também fosse horizonte delas.
Eu as via com simpatia. Uma vermelha, puxando para violeta; a outra, amarela. Lá fora, os carros roncavam; um cancão piava. Eu ficara em casa com Onofre. Cuidava da panela de angu que ardia na trempe do fogão de lenha.
Dedé teria um dia longo de lavagem de muita roupa no açude. A casa era minha, menino de 14 anos, treloso e besta. Se caísse o tédio, eu pulava na cama de mola e tudo ficava muito bem. Depois, eu pegava a bíblia do meu cunhado. Li duas mil vezes, porque só existia ela como livro.
Abusado da leitura, eu começava a busca. O alvo seria a lata de leite ninho, muito bem escondida por Dedé, afinal aquilo era uma preciosidade e objeto de um desejo tresloucado.
Se o Riacho Caititu tomava água, eu me permitia ver as bolhas amareladas ao pé do Pé de Mulungu se contorcendo em redemoinho. As notícias do rádio de padrinho Antônio não me diziam nada. Dina de Chagas Lucas chegava, mas se ia como chegara, cantarolando.
Um dia, achei um catecismo e um almanaque pensamento boiando por aí. O catecismo fedia a vela queimada, mas com cheiro de novena, uma fita vermelha marcando uma oração esquisita. O almanaque dizia que o meu signo era virgem e fazia predições, mas como eu não sabia nada de futuro, ia tentar salvar o angu que, por irresponsabilidade, eu deixara se queimar.
Tirando isso, eu vivia dentro de um sonho que só tinha presente: descobrir onde Dedé escondera a lata de leite ninho. Padrinho Antônio chegara da roça, sorte que Dedé já providenciara comida alternativa. O rádio, meu cúmplice, ocultava as reclamações de minha irmã mais velha:
Eu sou nuvem passageira
Que com o tempo se vai
Eu sou como o um cristal bonito
que se quebra como cai…”
@professorchicoleite
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