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Rogério Athayde lança obra focada na cultura e religião yorubá

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publicado em 02/12/2023 ás 11h00
atualizado em 02/12/2023 ás 18h00

Kubitschek Pinheiro – MaisPB

Já aprendi muito com o escritor Rogério Athayde  ao ler seu novo livro  “Oxalá é Quem Sabe”,com selo da Editora Pallas. Conversando sobre os deuses do mar, deuses da chuva, da mitologia, os orixás, deuses de todos os continentes “são ideias”. Boas sacadas milenares. Um livro das profundezas que ganham o mundo.

“Oxalá é Quem Sabe”,convida o leitor para mergulhar nas na espiritualidade afro-brasileira, oferecendo numa travessia única, a luz que vem das palavras. Ele é um mestre da narrativa envolvente, entrelaçando-se com a sabedoria ancestral.

Trata-se de uma homenagem às histórias que foram escritas depois de terem sido tantas vezes contadas sem papel e lápis. São histórias transmitidas a partir da tradição oral iorubá, um povo da costa ocidental africana, mais ou menos onde hoje encontramos a Nigéria. Os iorubás chegaram às Américas com a desumanidade da escravização e o Brasil está nessa lista. Foram desterrados, raptados, violentados, roubaram suas casas, suas famílias, sua cultura e sua felicidade.[…]

Rogério Athayde é escritor, professor de história e palestrante de temas referentes à África, religião afro-descendente, preconceito racial e intolerância religiosa. Seus mais de 20 anos e de vivências na cultura e religião yorubá contribuem para que ele  expandir esses assuntos como um alimento – com propriedade e fluência.

Athayde é doutor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional, mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e graduado em História, todos pela UFRJ. É autor do livro infanto-juvenil ‘Exu e o Mentiroso’, e tem diversos textos publicados em revistas especializadas, entre eles, ‘A vida em branco e preto’, ‘Água da palavra’, ‘A felicidade como busca, a religião como meio’ e ‘Porque escrevemos livros’, além, claros de livros em fase de editoração.

É professor de temas sobre mito, mitologia e ética dos Orixás. Ministrou aulas em cursos de pós-graduação e atualmente é professor convidado pelo núcleo Encontro de Saberes, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Em seu site www.rogerioathayde.com.br podem ser encontradas crônicas sobre assuntos do cotidiano, releituras de provérbios yorubás, indicação de livros sobre temática africana, entre outros tantos conteúdos do Universo África-Brasil.

Leia a entrevista que o autor concedeu ao MaisPB e descubra a riqueza, a pprofundidade que existe Os deuses iorubanos, como Xangô e Yemanjá, e todos ou outros, Exu, Ogum, Oxóssi, Ossaim, Oxum, Oxalá..

MaisPB- É linda a capa do livro “Oxalá é quem sabe: e outros contos afrodiaspóricos” uma toalha branca, acho que de mesa, e já é um convite para sentarmos e ler saboreando seu livro. Vamos começar por aqui pela arte, da artista Clara Zúñiga?

Rogério Athayde –  Sim. A capa é linda! Clara tem um trabalho maravilhoso. Ela conseguiu produzir uma imagem que conta a história de “Oxalá é quem sabe”, o conto que dá título ao livro. Tenho dito que ela fez seu poema. Que a capa é um poema. Essa história de Oxalá que reinventei é uma das mais conhecidas da tradição afrodiaspórica no Brasil. Nela sua roupa branca, sempre branca, imaculada, é borrada com azeite de dendê, carvão e sangue. Clara usou dendê, carvão e esmalte cor de sangue pra fazer a capa. O resultado ficou muito lindo mesmo.

MaisPB  – Os contos ou textos  trazem as histórias antigas, as verdadeiras, é claro, e é uma homenagem a tudo isso que era contado, agora você traz à tona, né?

Rogério Athayde –  Sim e não. Com as tradições orais não existe uma história verdadeira, canônica. O que acontece sempre são as inúmeras formas de contar uma mesma história. No caso desse livro, tentei recuperar um certo “tom” da contação. Mas me senti muito à vontade para recriar as histórias também. Em alguns casos, como no conto “Quando morrem os elefantes”, ou em “O pássaro de infinita beleza”, são criações minhas. Entre outros motivos, foi por isso que decidi escrever as notas no fim do livro. Elas dão conta de outras versões das mesmas histórias, onde as encontrei ou ouvi, e aquelas que são fruto de minha imaginação.

MaisPB – Lembrando a tradição oral de Iorubá, um povo distante, marcante, hoje espalhado pelo mundo, até citada numa canção de Caetano Veloso – “mamãe eu quero amar, a ilha de xangô e de Yemanjá. Yorubá igual a Bahia”. Vamos falar dessa junção, desses povos, dessas entidades?

Rogério Athayde –. A condição da diáspora africana nas Américas produziu uma quantidade inumerável de adaptações. Os deuses iorubanos, como Xangô e Yemanjá, e todos ou outros, Exu, Ogum, Oxóssi, Ossaim, Oxum, Oxalá… são eles mesmos e são também outros. As formas de expressar a crença religiosa no ambiente africano são simultaneamente semelhantes e desiguais se consideramos os inúmeros 2 exemplos ocorridos no Brasil e no Caribe. E não falo somente de adaptações sincréticas – coisa tão comum para todos os fenômenos religiosos. Falo das transformações que vão se dando com o tempo, da necessidade de usar as tecnologias de pensamento e das condições que os novos ambientes impuseram. Pra ficar penas com um exemplo, veja o que aconteceu com a medicina tradicional iorubana: foi preciso reconhecer que muitas das ervas encontradas no ambiente africano não se encontravam aqui. Então foi preciso adaptar, achar outras folhas que tivessem os efeitos medicinais semelhantes àqueles do outro lado do Atlântico… Mas isso é conversa muito comprida… Pra outro livro….

MaisPB- Os iorubás entre léguas e léguas chegaram às Américas com a desumanidade da escravização. Achei isso tocante, pode falar por favor?

Rogério Athayde. É curioso perceber que a história do Brasil sempre foi contada como uma sucessão de acontecimentos razoavelmente organizados, aparentemente sem grandes tensões, como se fossemos um povo amoroso e compreensivo. Mas é mentira. A história do Brasil é uma história de violência porque foi sustentada por quase quatrocentos anos de escravidão; e desde o fim dela, em 1888, as modalidades do racismo, do preconceito e do segregacionismo – para usar a proposta de Joel Rufino – não cessam de se multiplicar. Ainda lembrando do Joel, o racismo é um sistema organizado, racional, que possui um propósito de dominação. Essa dominação é ideológica, política, econômica, social, ela mantém privilégios e, claro, deseja apagar o que de mais poderoso possuem as tradições culturais subjugadas. Gosto de pensar que meus livros são combativos nesse sentido: que servem ao propósito de contar histórias, pelo gosto que elas têm, mas também pela 3 potência que carregam, como formas de combate à estupidez do racismo e da intolerância religiosa.

MaisPB – Aliás, como veio essa ideia de escrever essas contos, essas histórias que em prosa parecem versos?

Rogério Athayde –. Essas histórias são bonitas demais. E eu falo isso, muito à vontade, porque elas fazem parte da tradição oral de Ifá. Não são minhas (risos). Pelo menos boa parte delas. Meu trabalho de pesquisa – e já vão aí mais de vinte anos – me revelou um sem número dessas histórias maravilhosas. Costumo dizer que uma vida não é suficiente pra dar conta de uma pequena parcela delas. Então venho tentando reescrevê-las, com esse “gosto literário”. Agora sobre a prosa e o verso, isso é um tanto do que me atrai e tento aprender com autores como José Saramago, Mia Couto, Guimarães Rosa, Padre Antônio Vieira, Fernando Pessoa, Gregório de Matos, entre tantos outros, que usam nosso idioma tão encantadoramente. Eu gosto de pensar que sou seu aluno atento.

MaisPB –  Está lá no livro a narrativa de Ifá, que é o nome de uma divindade, de um conhecimento e também de um oráculo. Poderia nos explicar melhor sobre o Ifã?

Rogério Athayde. Sim. Ifá é muitas coisas. É o nome de uma divindade. Que também é chamado de Orunmilá. Orunmilá é um orixá, assim como Exu, Ogum, Oxóssi, Ossaim, Oxum, Yemanjá, Xangô, Oxalá… E como todos eles, Orunmilá possui uma categorização humana, uma antropomorfização. No caso de Orunmilá, ele é representado como um homem sábio, um sacerdote, que consulta o oráculo de Ifá. Ele é o patrono da inteligência, do conhecimento e da sabedoria; assim como Exu é o patrono do movimento e do dinamismo, como Ogum é o patrono do ferro e das coisas que com o ferro podem ser feitas, a tecnologia e a guerra… E por aí vai. Mas Ifá ainda é outras coisas. Ifá é o próprio oráculo; é a tradição oral, a “oralitura”, com suas inumeráveis histórias 4 (mitos e fábulas); Ifá é a medicina tradicional iorubana; é “ofó”, a palavra de poder, ou palavra encantada, que quando proferida de maneira adequada e no momento correto produz efeitos mágicos… Entre outras coisas. Mas acredito que Ifá pode e deve ser pensado como um recurso para o pensamento; que com o que aprendemos em Ifá podemos fazer filosofia, literatura e ter uma vida melhor.

MaisPB  – “Oxalá é quem sabe” é seu quarto livro que sai pelo selo Pallas, com temas focado na luz dos orixás: “Orunmilá” (2022), “O filho querido de Olokun” (2019) e “Exu e o mentiroso” (2012). Desde quando começou esse trabalho de pesquisa e aptidão?

Rogério Athayde. – Como disse, venho pesquisando a tradição oral de Ifá há mais de vinte anos. Isso está ligado à minha iniciação, como babalawo, como sacerdote de Ifá.

MaisPB  –  Ainda hoje estudo mitologia grega e romana e  acho da maior importância. Nesse livro novo você faz um passeio usando os seus conhecimentos acerca da mitologia dos orixás, que são seres mundiais. Simbora falar dessa relação do homem com as divindades?

Rogério Athayde.  – Antes de qualquer coisa, todos os deuses são ideias. Todos, de todas as culturas. Eles existem, todos eles, e existem como ideias. Nós acreditamos em ideias. E essas ideias são a realidade como nós a entendemos. A crença nos deuses é a crença em formas culturalmente definidas da realidade. Então os orixás, como todos os deuses, expressam nossa relação com o mundo. São uma forma, talvez até uma forma especial, ou privilegiada, de observar como nós humanos estabelecemos a compreensão, ou criamos uma compreensão da realidade. E ainda assim é preciso dizer que os deuses não criação humana: mas uma percepção humana da realidade. Isso é complicado; mas não é difícil.

MaisPB  – Muita gente preconceituosa, gente medíocre, faz vista grosa em relação ao Candomblé, né?

Rogério Athayde. -. Preconceito é coisa triste. E triste porque violenta; triste porque estúpida; triste porque ignorante. De novo o Joel Rufino: Joel dizia que o racismo – e suas modalidades, como o preconceito em relação às religiões de matrizes 5 africanas – não é um dado de natureza; é uma criação humana. E sendo criação humana, é triste, mas pode e deve ser desfeita, pode e deve ser combatida. O preconceito, que leva tanta gente a condenar e violentar as religiões de matrizes africanas tem remédio. É um remédio que cura muitas outras doenças sociais: chama-se educação. Só a educação pode criar condições para lutar contra o preconceito, e contra o racismo, a discriminação, a segregação e o genocídio.

MaisPB – Quem é  Rogério Athayde?

 Rogério Athayde – Essa é a pergunta mais difícil. Olha, eu sou um sujeito bem feliz, casado com a mulher mais inteligente, mais amorosa, mais companheira e mais bonita do mundo; sou pai de três filhos maravilhosos, que só me dão alegria; sou filho orgulhoso de Ajagunã, que me ensina a deixar o coração sereno no meio do campo de batalha; sacerdote de Ifá, estudioso obsessivo de seus segredos; e protegido de Exu, que nunca me deixa sozinho. Que mais eu posso dizer…