João Pessoa, 04 de dezembro de 2023 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

Encontro de almas

Comentários: 0
publicado em 04/12/2023 ás 11h29

Existe um ditado: “ Fulano encontrou a sua alma gêmea”, “outra metade”, a ideia do “par perfeito, “o sapato roto para o pé doente”, etc. Será que isso é verdade? Não sei dizer, mas às vezes parece coincidência, que acredito não existir. Penso, que há uma energia entre as coisas de Deus e elas se atraem. Não há como explicar o que provocou o encontro dessas almas gêmeas. Parece que foram intuídas a caminhar uma em direção a outra, destinadas a cumprir uma missão, que estava predestinada, traçada, sem que os protagonistas conhecessem. Objetivada a fazer a ligação entre o mundo comum do cotidiano com o mundo mágico espiritual sagrado. Platão, no seu livro “O Banquete”, quando tenta definir o amor, criou o mito da alma gêmea. Paulo Coelho, no livro “O Alquimista, ” referindo-se ao assunto, diz: “ A alma gêmea existe quando temos que escutar o coração! Porque onde ele estiver, estará seu tesouro”. Cada um procura dizer o que pensa ao ser mais claro para elucidar o fenômeno.

A literatura está repleta de casos de amantes destinados a ficar juntos. O clássico exemplo é o de Romeu e Julieta, o de Heathcliff e Cathy em O Morro dos Ventos Uivantes. Os hindus em suas tradições defendem a ideia de que as pessoas possuem conexões cármicas. Rumi, cujo nome é Maulalana Jalaluddin Rumi, intelectual islâmico, teólogo, erudito, do século XIII, tornou-se famoso como poeta místico que “combina a alma persa com a alma islâmica“. Apresentou a ideia de que os amantes não se encontram no final, mas que eles estão dentro um do outro de alguma forma, todo o tempo. Caracteriza-se por uma compreensão profunda da condição humana que reconhece o luto da perda e a alegria extática do amor.

A vida apresenta desafios que para vencê-los e serem superados necessita-se coragem, principalmente das pessoas que pretendem viver uma grande história de amor. Este encontro acontece entre dois seres, quando menos se espera, aparece de forma mágica e significativa. Não há premeditação, surge de repente e estabelece uma conexão quando os olhos se cruzam de forma profunda que toca no âmago, no mais íntimo, e, mesmo em silêncio, são capazes de se comunicarem como se um pertencesse ao outro. Dá a sensação de que já se conhecem há muito tempo ou ocorre uma série de coincidências. Esses fatos demonstram que algo especial está acontecendo. Este amor a que nos referimos vai mais além do carnal, está impregnado de qualidade divina. Diz o provérbio: “os olhos falam, são as janelas da alma”, acredito que através dos olhos enxerga-se as suas almas. Não é a atração de olhos e sim atração de almas.

Dito isto, vou relatar uma história de vida que começou na Paraíba e terminou em Portugal. Marília foi abandonada com duas filhas e um filho, de um relacionamento que durou 15 anos, mas não chegou a casar. Ficou desolada pois era pobre em situação precária para mantê-los. Habitava na periferia, numa casa de taipa. Teve que trabalhar para enfrentar aquela barra. Às vezes recorria aos parentes mais abastados. E assim foi levando a vida. A tristeza dominava, não saia de casa, não tinha amigos e nenhum divertimento, o tempo era pouco para dar conta de seus encargos. Nessa situação passou 6 anos vivendo para a família. Não tinha intenção de relacionar-se com mais ninguém pois a decepção sofrida não lhe dava ânimo para tentar um casamento. Um dia Júlia, sua irmã, achando-a desolada convidou-a para confraternizar na casa de Maria, sua vizinha,e que Marilia conhecia. O motivo da confraternização era recepcionar a irmã Shelda, que chegara de Portugal para passar quinze dias de férias. Marilia aceitou, pois era uma oportunidade de rever as amigas de infância e de camaradagem, e que não se viam há bastante tempo. Durante o evento foram tiradas muitas fotos.

Chegando em Castelo Branco, cidade do interior de Portugal, Shelda mostrou as fotos aos amigos e, dentre eles, Artur interessou –se em saber quem era aquela mulher tão simpática, referindo-se à Marilia. Shelda contou para ele a situação de sua vida. Ele motivou-se e pediu, caso fosse possível, o telefone e o seu WhatsApp pois tinha o desejo de comunicar-se com ela. Shelda disse que ia consultar e depois lhe dava uma resposta. Ao falar a Marilia, esta mostrou-se envergonhada e sem condições, achando-se tão humilde para manter relacionamento com uma pessoa, além da distância, tão diferente cultural e socialmente. Shelda disse: “não há nada de mais, você manter correspondência com Artur”. Então ela permitiu. Não deu uma semana Artur ligou e ficaram mantendo conversas pelo WhatsApp, se conhecendo melhor. Só em conversar Marilia sentia-se feliz pela atenção, preocupação e carinho demonstrados por sua pessoa, sentimento que poucas vezes experimentou já que sempre teve uma vida de sofrimento. Aquele momento fazia renascer nela uma nova vida. Com dois meses Artur veio ao Brasil conhecer Marilia e sua família. Havia um receio dela que ele ficasse chocado com sua pobreza, pois ela depois veio a saber que Artur era um engenheiro civil bem-sucedido, com vida econômica estável, mas que estava separado há dois anos e possuía um casal de filhos. Artur passou um mês aqui em João Pessoa e marcou com três meses o casamento para o final do ano. Marilia deveria ir para Portugal residir lá. Os dois filhos mais velhos já estavam casados, menos Katia que tinha 16 anos. E assim aconteceu. Em princípio Marilia foi só e com quatro meses mandou buscar a filha mais nova. Katia era registrada só com o nome da mãe e havia nela o desejo de ter um pai o que foi realizado por Artur que a adotou como filha, ganhando ela a cidadania portuguesa.

A história de Artur é traumatizante. O que se sabia aqui é que ele tinha sofrido uma traição e isto seria o motivo de sua separação. Marilia ao chegar lá ficou ciente da dura realidade que Artur vivenciou com sua ex-mulher. A cidade é muito pequena e as pessoas se conhecem e foi sabedora que a sua ex- esposa aprontou uma com ele e toda a cidade tomou conhecimento. Isso provocou em Artur uma profunda depressão, por ser um homem íntegro e correto, de moral ilibada. O ocorrido mexeu muito com o ego e a estrutura de seu emocional. A família ficou desmantelada. O filho caçula tinha 10 anos ficou revoltado e em sua cabecinha queria que o pai tivesse agido de maneira vingativa, mas sua única atitude foi dar o desprezo e expulsá-la da casa.

A chegada de Marilia em sua vida transformou-o por completo. Ele na sua rotina, mantinha-se trancado em sua casa não tinha vida social, não saia para nada, não visitava os amigos e mantinha-se isolado. Até as janelas não eram abertas. A casa, uma mansão estava descuidada. O jardim era enorme, mas abandonado, cheio de mato precisando de um trato para revigorá-lo. Perdera o gosto para viver, a situação estava muito difícil. Os vizinhos contavam que não saia de casa, desestabilizado psicologicamente. O filho mais velho tinha ido morar fora; o mais novo não queria morar com a mãe, mas também não queria morar com o pai, porque entendia que ele devia ter agido de outra forma, estava morando com sua avó. Isto tudo mexia muito com Artur.

Para Marilia essa situação foi impactante, pensou: ” tenho que mudar tudo isso. Dar vida a esse ambiente para torná-lo agradável e cheio de amor. Abriu as janelas, puxou as cortinas, deixou a luz do sol adentrar no interior da casa. Começou a incentivar Artur a movimentar-se chamando-o para limpar o jardim, fazer novas plantações. Dizia ela: “Isto é bom Artur. É uma terapia para nós e motivo de distração”. A única coisa que Artur não largou foi a empresa onde trabalhava como diretor de uma divisão. E assim prosseguiu. Ela com a experiência trazida do interior, sem ter o que fazer, queria preencher também o tempo, ainda não conhecia ninguém e era uma maneira de se ocupar. O quintal era muito grande e cabia várias plantações e é comum nas casas de Castelo Branco possuírem terreno grande com plantações, o que se chama de quinta. Construiu um galinheiro e começou a mexer na terra plantando feijão e milho. Assim, Artur, com a ajuda de Marilia começou a retomar o gosto pela vida e a fazer as coisas iniciando a transformação que Marilia tanto desejava e que estava acontecendo. Artur apresentava novo ânimo e fazia planos para o futuro, havia voltado a alegria de viver.

Marilia foi conhecer Sérgio, filho mais novo de Artur que estava com a avó, sem querer ficar com ele e nem com a mãe. Marilia conta que quando bateu os olhos em Sérgio sentiu nele uma criança carente, desejosa de um abraço, de um aconchego, ele tinha treze anos. Ela procurou aproximar-se, acariciando-o, com seu jeitinho brasileiro, também estava carente, com saudades de seus filhos e netos, já tinha deixado tudo no Brasil. Sentiu que Sérgio correspondeu a seus afagos. E foi querendo ficar na casa do pai. Ele estava sendo acompanhado por psicólogo, apresentava distúrbios psicológicos. Dizia ele “todo mundo na cidade sabia o que a mãe tinha aprontado com seu pai” e essa situação deixava a mente perturbada. Marilia, carinhosa com Sérgio, foi ganhando espaço em sua vida que a partir daí era desejoso de permanecer e ficar ao seu lado. Marilia, assistia filmes juntos mantendo uma relação de família. No que se refere ao mais velho, estava depressivo, recebendo a assistência de um psicólogo. Marilia procurou ser uma conciliadora, na sua cabeça tinha que unir aquela família. Procurou conversar com todos, Artur e seus filhos utilizando a linguagem do perdão. No início Artur estava relutante. Marilia empregou as palavras da bíblia exemplificando o perdão. Nós, na terra, deveríamos perdoar porque embora o perdão seja difícil, mas é o ato mais sublime do ser humano. Quando acontece perdoarmos, as bênçãos de Deus caem sobre nós”. Marilia com seu jeito meigo e cativante foi convencendo a família a admitir o perdão, inclusive Artur. Expressava-se; “Artur você tem que aprender a perdoar. Tire de seu coração esse rancor que não lhe faz bem. Vamos viver nossa vida, sermos felizes”. Procurou a ex-mulher de Artur para conversar, como ela podia ajudar aos meninos a perdoá-la, fazer as pazes. E aí foi desenvolvendo o trabalho com a mãe e com eles. Fazia tudo nos bastidores”. Chamou Pedro para vir almoçar, passar o fim de semana, eles começaram a frequentar a casa e aos poucos foram chegando, ao ponto de o filho mais novo dizer: “Marilia, eu queria que você fosse minha mãe”. Ela respondeu: “Sérgio, eu não sou sua mãe, mas posso ser uma grande amiga, uma tia querida, uma boa madrasta, uma mãe segunda. Eu vou aceitar com muito carinho. Eu sou mulher de seu pai, mas nunca vou ocupar o lugar de sua mãe. Você tem que aprender a perdoá-la. Ela nunca vai deixar de ser sua mãe”. Esse trabalho de aceitação com a família durou mais ou menos seis meses. Os filhos voltaram para casa e o clima de harmonia começou a estabilizar-se. Marilia disse: “quando tudo se normalizou ela apresentou uma proposta: ” Eu vou convidar a avó e a mãe de vocês para um jantar”.

Conta Marília que comunicou a Artur que ia preparar um jantar, que eu chamo “jantar de paz” para a ex-sogra e ex-mulher dele em sua casa. Você tem que fazer isso pelos seus filhos. Depois da separação, Artur não tinha ainda visto a mulher. Marília falou que ele a recebeu bem, educado. À noite foi de muita emoção; a mulher pediu perdão ao marido e a seus filhos, elogiou Marilia, que ela era grande mulher, que fazia jus estar com ele, pois como pai e como homem foi sempre muito correto e digno. Aquele momento que estava vivendo iria ressignificar e transformar sua vida”. Marília acrescentou “ depois do jantar foi a cozinha tratar de uma sobremesa, quando chegou lá a avó dos meninos se ajoelha a seus pés chorando e com muita emoção, expressando: “ Marilia muito obrigada, você foi um anjo que Deus enviou e entrou na vida de Artur e de todos nós, dos meus netos e de minha filha. Nunca pensei que durante minha vida ia vivenciar momento como esse que vivi aqui. Você foi um anjo que Deus colocou aqui na terra para realizar este momento. ” Marília disse: “Dona Flora, levante, não se ajoelhe que eu não sou digna de ninguém se ajoelhar perante mim e levantou-a. Essa noite foi preenchida de muitas emoções e tornou-se para mim inesquecível e a sensação que fui instrumento do bem”.

Marilia mantém seu casamento com Artur há nove anos de paz e felicidade. Após três anos de casada teve um câncer de mama, mas hoje encontra-se curada. Recebeu toda assistência, a melhor que existia no pais. Artur, dedicado, carinhoso e atencioso não lhe deixou faltar nada. Ele recentemente veio ao Brasil e esteve aqui em Joao Pessoa e nos falou: “Marilia foi minha alma gêmea, o anjo que apareceu em minha vida”. Continua apaixonado e não cansa de dizer: “Ela é uma mulher extraordinária. Fez-me voltar à vida e me deu novo ânimo. Tenho certeza que ela me completou como também a completei. Foi uma coisa de Deus“. A filha mais nova de Marilia, com 20 anos, que foi adotada por Artur, frequenta a Faculdade fazendo curso de graduação em Estética. Está noiva de um aspirante da marinha e de família muito boa. O casamento está marcado para o próximo final do ano, A sua mais velha, casada, reside em Lisboa, o casal está empregado e com boas condições. Só um filho que permanece em Joao Pessoa e não tem pretensão de mudar-se para Portugal.

Como se constata, o casamento de Marilia e Artur tomou por base mais razões psicológicas do que materiais. Isto se observa no relacionamento do dito “almas gêmeas” que exige trabalho, compromisso e ambos ficam motivados para encontrar a solução para os problemas, um apoiando o outro. Crescem juntos e procuram nessa relação amorosa a sobrevivência de ambos. Vejam o caso dessas almas que se uniram e estavam tão distantes, sem se conhecerem um ao outro. Porém, os seus destinos conectados atravessaram o oceano para se encontrarem, e ao cruzarem os olhares o coração identificou e certificou de forma sutil e lenta que um pertencia ao outro. Há dez anos permanecem felizes, unidos, e testemunham que um é a metade do outro.

Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

Leia Também